Christina Ramalho
Folheava distraída o
caderno de “Classificados”, quando um anúncio lhe chamou a atenção: “Procuro um
sorriso para enfeitar meu rosto”. Eu,
hein, que tipo de anúncio é esse? Cada coisa que aparece... Quem em sã
consciência pensaria em publicar algo assim? Procuro um sorriso... Ridículo...
Bem, assim ela pensou, mas, ridículo ou não, o tal anúncio não lhe saiu da
cabeça. O dia passou, arrastando suas horas sem novidades, e a lembrança do
texto ia e vinha, provocando-lhe reflexões.
Procurar um sorriso
para enfeitar o rosto. Que significado teria isso? Alguém triste e solitário
fazendo um desabafo? Alguém à procura, na verdade, de um amor? E começou a
pensar no próprio sorriso. Na verdade, andava sem motivos para sorrir.
Lembrou-se do estado terminal da mãe, da falta de paciência do pai, sempre
envolvido com o amor quase secreto que se arrastava há anos, da separação do
irmão, do desemprego da irmã... Desfiou um rosário de lembranças sem sorrisos.
Recordou-se da falta de dinheiro, da recente síndrome do pânico, da situação
difícil da empresa onde trabalhava, do choro do bebê recém-nascido que lhe
exasperava durante as madrugadas, do excesso de peso que não conseguia
vencer... Nossa, pensou, chega disso! Que vida é essa? Será que também andarei
carente de sorrisos?
Os problemas sumiram
do pensamento. Mas não apagou a imagem da mãe. Tão magrinha, tão frágil, tão
querida... Viu-se sentada na cadeirinha de vime enquanto a mãe lhe trançava os
cabelos. Filha, você é tão linda! Depois se lembrou das longas conversas sobre
namoros, paixões, meninos, rapazes, homens. Amiga e carinhosa. Essas eram as
melhores palavras para definir sua mãe. Sorriu, antecipando saudades,
umedecendo os olhos, mas sorriu, docemente.
O pai... Apesar de
tudo, não conseguia ter raiva dele. A mãe definhando, o pai amando... A mãe
morrendo, o pai se culpando... Tentava compreender o sentido de tudo aquilo. O
pai nunca fora um bom marido. Essa era a verdade. Assim como era verdadeiro o
ar de menino que mantinha no rosto desde a chegada daquela paixão. O mesmo ar
de menino que ela registrara em suas memórias de filha mais velha. Ela e o pai
na loja de animais, escolhendo um cãozinho. Escolha, filhinha, escolha um. E
saíram de lá cheios de pacotes e acompanhados do Tuti, um beagle que lhe daria
muito trabalho e muitas alegrias. Sorriu novamente, conseguindo separar o pai
do marido da mãe.
O divórcio do irmão
foi surpreendente. Dez anos de namoro, um de casamento. Curiosamente terminaram
tudo sem alarde, sem brigas... Ao contrário, esbanjavam carinho um pelo outro.
A família parecia sofrer mais que os dois. Recordou-se dos apelidos tenebrosos
que os dois usavam. Tuquitinha, Tutuquinho, Flofi Flofi, Lelezinho, ... Usavam
e continuavam a usar! Sorriu mais uma vez. Curiosos aqueles dois...
O desemprego da irmã
era uma situação passageira. A irmã era brilhante. Claro que logo apareceria
uma colocação... Talvez se angustiasse mais do que a própria irmã, que, naquele
momento, estava envolvida com simpatias para arranjar emprego. Faladeira, a
irmã ligava dia sim dia não relatando as experiências inusitadas. Ao final do
telefonema, a irmã sempre tinha uma palavra esperançosa, que consolava a mais
velha, como se o problema fosse desta. O otimismo da irmã lhe preencheu o
coração. Sorriu novamente.
Dificuldades
financeiras? Quem não as tem? Conseguiu achar engraçado o dia em que,
enlouquecida com as dívidas, fez uns colarezinhos de contas coloridas e saiu
oferecendo vizinhança afora. E não é que vendeu tudo? Riu de si mesma. Riu
também quando lembrou ter chorado ao mesmo tempo em que o filhinho por puro
desespero. Cala a boca, neném. Preciso dormir. Preciso dormir. Ai, Meu Deus, o
que eu faço? Ele dormiu. Ela também. E, no dia seguinte, se enterneceu com o
cheirinho de bebê recém-acordado que o pescoço do filho exalava. Sorriu, cheia
de amor. E o pânico que lhe fez pular no colo do vizinho quando o elevador
enguiçou? Até hoje percebia o sorrisinho fraterno que o sr. Amadeu lhe
destinava quando se encontravam... Que vergonha! Mas riu... O emprego estava
por um fio. Assim que terminasse a licença, voltaria. Porém, o que encontraria?
O salário atrasado, o chefe emburrado, insatisfação geral... Mas a última
confraternização de Natal tinha sido tão boa, tão divertida. Paulinha, bêbada,
finalmente se declarou ao colega do DP. O Bastos, palhaço como sempre, dançou
como se fosse uma vedete, jogando charme para o diretor da empresa. Era uma
turma engraçada. E sorriu. Do sorriso passou às gargalhadas... Não é que ela
ontem agradeceu o grito “Gostosa!” que ouviu ao passar pelo bar da esquina?
Ah... Tinha que agradecer... Há tanto se sentia uma mulher desengonçada, sem
atrativos... Aquele “gostosa” feio, mal educado, foi “tuuuuudo de bom”... Só eu
para fazer uma coisa dessas, pensou sorrindo...
Procuro um sorriso
para enfeitar meu rosto. Voltou ao jornal. E escreveu uma carta para remeter à
caixa postal do autor do anúncio. Disse a ele (ou a ela), o que eu, agora me
voltando para os sorrisos de que necessito, gostaria de dizer a vocês.
“Infelizmente, amigo, amiga, (vocês) o sorriso sincero, que enfeita o rosto
porque revela a alma, não está sempre em nossas vitrines. Cede lugar aos bicos,
aos dentes trincados, ao muxoxo, ao mau-humor. Mas, de um modo ou de outro, a
lembrança de momentos especiais, de pessoas especiais, traz o sorriso de volta
e enternece a vida.” Ela, a personagem, ainda disse ao destinatário: “Procure o
sorriso dentro de você. Eu encontrei o meu”.
Muito bom, Chris! Obrigado por compartilhar conosco a sua belíssima arte.
ResponderExcluirObrigada, Carlos querido, por estar sempre por perto. Beijo grande.
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