Christina Ramalho
Volto
a publicar uma “crônica-ode” que escrevi em 2008. Ao reencontrar o texto,
senti-o ainda vivo em minha emoção...
Ter
poetas entre os amigos é algo marcante na vida de qualquer pessoa. Embora
poemas alheios a seus autores sejam acessíveis a nós, bastando, para isso, que
busquemos tê-los por perto, quando quem está próximo de nós é um poeta (ou uma,
registre-se bem), não tem jeito: algo que muitas vezes nem pensaríamos em
buscar se apresenta diante de nós, instigando-nos o tempo todo a romper com a
monotonia do pensamento 3 X 4. Um amigo poeta é colírio, é susto, é aquele par “anjo/demônio”
soprando gracejos em nossos ouvidos. Pensamos: “o mundo é uma merda!” E nosso
amigo poeta diz a mesma coisa. Mas não diz a mesma coisa. Diz mais. Diz
diferente. Diz de um jeito tão danado de bom, que, de repente, passamos a olhar
para o tal “mundo merda” com olhos que não tínhamos. E, como uma contradição,
ao olharmos para o mundo através dos olhos que a poesia construiu em nós, ele,
o mundo, também de repente parece não ser “tão merda” assim... afinal, não é
que nele habita um poeta? Falo isso e me lembro do poema “Fardo (a consciência
do zero, 1981)”, do livro Rarefato
(1990), de Frederico Barbosa:
tenho
que
tentáculos
afiados tentando
fincar a
vista futura feito
oráculo
não
sou cego não sossego
Raio de poeta
que nega Homero para ser um. Raio terrível de poeta que brinca de dizer quão
aguda é a palavra que percebe além de nós, que guarda lince nos olhos, angústia
na consciência do vaticínio que nem vaticínio é, porque não há sequer espaço
para a consolidação da imagem que se previu. O mundo acelera o poema, que morre
logo depois do ponto final. Isso, poeta, não use o ponto final. Não sossegue.
Nunca.
Ter
poetas entre os amigos é essa coisa angustiante de se ver invadido/a por esses
tentáculos afiados e ter que sobreviver sem as sobras do que éramos antes do
poema. Poemas cuspidos em nossa cara, em nosso cotidiano, em nossa mesquinha
necessidade de pularmos contentes dentro da bolha que nos protege, sem perceber
que ela é de sabão. Amigos poetas, com sua chuva de sentidos, exigem de nós
reinaugurações constantes. É um “reinventar-se” que não acaba nunca. É aquela
consciência de ser o solitário entre as gentes, de ser o sobrevivente cuja
reinauguração jamais é suficiente, como me faz recordar outro amigo poeta, o
Luiz Otávio Oliani, no poema “Fatalidade”, do livro Fora de órbita (2007):
a vida pulsa em hiatos
e não sei pedir socorro
camaleão fora do ventre
transmudo a cor à revelia
mas a morte não é daltônica
Outra vez sem
ponto final. Outra espetada na consciência tão placidamente sentada na antessala
do existir, isenta de poemas, como uma vida (?) confortável deveria ser. E, no
entanto, todavia, contudo, porém, vem-nos o amigo poeta, com seu poema dizer
não o que precisamos ouvir, mas o que precisamos ter para dizer. E a não
daltônica morte visita nossa antessala soando todos os alarmes e dizendo: “Não
há sala!! O que você está fazendo aí? Esperando o quê?” Ele não pede socorro,
mas nos socorre. Sina maldita.
Ter
poetas entre os amigos é, assim, estar sempre cutucando aquela feridinha
antiga, numa espécie de ritual sadomasoquista, em que somos algozes e vítimas.
Algozes, porque amamos nossos amigos poetas mais do amamos a nós mesmos, logo,
com eles aderimos à desconstrução do mundo e viramos guerreiros absurdos com
baionetas que atiram fonemas e ferem alguns poucos ouvidos atentos. Vítimas,
porque, embebedados por suas palavras, saímos mesmo por aí, atirando em tudo,
principalmente em nós. E, no entanto, todavia, contudo, porém, e todas as
adversativas que os amigos poetas nos trazem, ressuscitamos a cada novo poema,
como conseguiu fazer Lau Siqueira, com seu “Bobo da corte”, do livro Texto sentido (2007), quando chegar aos
44 me pareceu uma convocação iminente ao inventário. Não precisei fazê-lo.
Estava ali, no poema, disfarçado em outro número:
o
que sinto nesses quarenta e seis vértices ungidos
que ora espetam ora aguçam os
sentidos
é
que
cada momento vai roendo
os ossos e
a
dormência
do impossível tomando conta de
tudo
que
é a b s o l u t o
o que comove nesses anos cumpridos entre
verdades
amargas e doces mentiras é que apesar
de
tudo
ainda pude semear as sobras
da minha
inquietude
poemas
derramados
espalhados no tabuleiro
do
que tanta
vez provoca o
asco afirmativo da
existência
o
que colhi entrementes nem sempre
foi da
melhor safra mas ainda estou aqui escrevendo
versos ligeiramente aptos às consagrações
do
esquecimento
o vazio
dos olhares atônitos
já não apavora
o medo
há muito
perdeu o sentido
ouço
o ruído das horas passando ao largo de
uma
vida
que
se cumpre para muito além das paisagens
guardadas
na retina
e sorrio
como se fossem
oráculos os galhos
do
cajueiro que vejo
pela
porta entreaberta sob o
mantra estridente
dos sagüis que resistem
nos
esgares da mata
habito
meu silêncio
e
ouço atentamente a imensidão e a quietude
de
tudo que grita e se move
o
que está posto é muito mais do que posso
por
isso sigo em frente
derrubando
os muros que possam afastar
as
matilhas da ternura
as
águas que passaram nesse rio jamais ficaram
turvas
por isso não me curvo e
vou
indo vou
rindo de tudo
embriagado
com minha própria sede
como
um homem que transita pela consciência
dos
caminhos jamais percorridos
vou
passando
passeando
pelo mundo
Raio de amigo
poeta que sempre sabe antes de nós, que parece rir das neuroses que, sob suas
rédeas, se fizeram metáforas, esvaziando as reverberações super apelativas de
nossas emoções indomadas. Ele doma. Molda. Apropria-se. Indo e rindo de si, de
tudo, de nós, passeia mesmo. O que, em nós, é inventário, nele é verso
malemolente, rio sinuoso de palavra trânsito. Que passa. Mas sem ponto final.
Outra vez. E o “mundo merda” é tão mais que isso, só porque ele está ali. O
inventário dói. E batemos palmas para a dor, porque nem mais dor sabíamos
sentir.
Ter
poetas entre os amigos é, enfim, ver-se, como eu, ridiculamente compelida ao
texto ode, ao puxa-saquismo deslavado, àquela vontade de dar um abraço bem
grandão nesses sujeitos tão descaradamente sábios e néscios, malabaristas 24
horas por dia caminhando nos fios do desejo que a palavra tece e arrebenta bem
no meio da caminhada. Cai o poeta e nos leva (amigo...) com ele. Do tombo,
surge outro poema. Nele. E outro hematoma. Em nós. Merda de mundo legal este em
que “merda” pode ser bom agouro. Sorte. Isso é ter poetas entre os amigos.
Março de 2008
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