Voava de Paris a Lisboa, deixando
os pensamentos correrem soltos, como as nuvens que se ofereciam à contemplação
serena de meu corpo relaxado, mas um tanto cansado das últimas tarefas
acadêmicas. Sempre que estou longe de casa surge aquele compromisso explícito
com as divagações sobre o sentido da vida, os pertencimentos, as diferenças, as
relações humanas. E o avião amplia esse compromisso, pois nossa fragilidade na
situação de voar com asas alheias deixa bem claro que só temos o pensar como
resquício de nossa humanidade. Assim ia eu, refém que estava da vontade
absoluta do pássaro metálico gigante e, ainda nestes tempos tão tecnológicos,
impressionante.
A meu lado, sentada e um tanto
inquieta, uma menina de uns doze anos, dona de olhos redondos e vivos, esticava
o pescoço em busca de alcançar a vista da pequena janelinha da qual eu,
aparentemente, era a dona. Via-se claramente que seu desejo era de paisagem, e
eu quis muito ceder a ela meu lugar, mas, na terceira poltrona, o pai, sério e
concentrado, me deixava tímida. Não conhecia a língua que falavam, o que
aumentou minha timidez. Cedi, no entanto, o mais que pude, espaço para que a
bela menina saciasse um pouco sua curiosidade de céu, nuvens e pouco mais.
Obviamente, a menina não tinha
nome para mim. Fiquei a imaginar qual seria. Olhei-a de soslaio, e percebi
detalhes como seus brinquinhos azuis, suas unhas com estrelinhas que brilhavam,
seus chinelos, sua bolsa cheia de pequenas flores, a cor de jambo de seus
braços. Mas ela, concentrada que estava no exercício de buscar o céu, não
reparou na minha curiosidade indiscreta.
De repente, a refeição a bordo.
Eu recusei. Estava cansada das comidas de avião. Ela aceitou prontamente, mas,
logo percebi, nada pareceu lhe agradar muito. Invertendo a dita ordem das
coisas, ela começou pela sobremesa. Pequenos pedaços de pera, que eu já havia
conhecido no voo de ida. Duros, sem graça... Não deu outra. Ela ficou no
primeiro pedaço e logo tampou o pequeno recipiente. Partiu para algo entre uma
panqueca e uma lasanha. Uma só garfada bastou. Não havia nada que pudesse ser
interessante para uma mocinha certamente acostumada a outros sabores.
Desiludida, ela fechou as embalagens e deixou o olhar perder-se, sem comida,
sem janela, sem nada. Eu, como tinha um Toblerone na bolsa, tratei de lhe
oferecer um pedaço, mas ela não aceitou. Não gostaria de chocolate? Recusou por
excesso de educação? Ou seria a figura do pai que lhe deixava sob controle?
Comi um pedacinho e guardei o que restava na bolsa. Ela desinteressou-se de
minha guloseima.
Mais uma hora de voo e estaríamos
em Paris, mas certamente o tempo lhe deveria parecer eterno, dadas as
limitações que a situação lhe impunha. Decidiu dormir. E eu me concentrei
novamente em minhas divagações.
De repente, o peso leve em meu
ombro. Dormindo, a menina deixara o corpo solto, também como as nuvens, e o
balanço do avião fez sua cabeça tombar em minha direção. Primeiro, só um peso
leve, depois, o peso absoluto de quem se entregou ao conforto de um travesseiro
imprevisto: meu ombro. E ali ficaria ela até os minutos finais do voo, dormindo
pesadamente, aninhada em meu ombro e, sem saber, oferecendo-me uma onda doce de
ternura, que me fez bem.
Acomodei-me o melhor que pude
para que meu ombro lhe fosse confortável. O pai também dormia e não vira a
filha aninhar-se em meu ombro. Tudo estava em plena paz e equilíbrio. A cabeça
de menina me fez lembrar das meninas (já mulheres) que tenho, e vi Gabi e Isa
também adormecendo em meu ombro. Tive vontade de lhe fazer um cafuné, tal como
faria em minhas meninas. Aquela jovem e desconhecida criatura era,
momentaneamente, uma filha adormecida no conforto da mãe. E eu a amei naquele
fragmento de tempo e espaço, porque ela era refúgio para minha saudade e era,
igualmente, materialidade da leveza que
só a infância tem, em sua maravilhosa entrega ao desconhecido. Cheguei a torcer
para que o tempo que faltava se arrastasse mais lento que os ponteiros, só para
continuar a desfrutar mais um pouquinho daquela maternidade tão artificial e
real ao mesmo tempo. Olhei novamente pela janela e me senti feliz pela
responsabilidade recém assumida de deixar a menina desfrutar de seu sono em
paz.
Cerca de quarenta minutos depois,
ela acordou aos pouquinhos, e nem se deu conta de haver dormido em meu ombro. Ou, se se deu conta, não pareceu se importar. Ao
contrário, levantou a cabeça preguiçosamente, espreguiçou-se, compôs as roupas,
puxando a camiseta cor de rosa que vestia, olhou para o pai e viu que
continuava dormindo. Nossos olhares, então, se encontraram. E eu, não querendo
ser mãe de filha desconhecida, arrisquei: “Comment t’appelle tu?”. A reposta
foi brevíssima: “Leah” (Pelo modo como pronunciou, imagino que se escreva
assim). Deu-me um sorriso. Eu retribui. E c’est
fini! Chegávamos a Lisboa.
Leah, a menina do avião, agora
com nome, deixou em meu ombro, em meu coração e em meu pensamento a certeza de
que a vida poderia ser muito, mas muito mais simples, se em cada corpo cansado
houvesse uma cabeça ainda não maculada por todas as regras, cerimônias,
protocolos e limitações que nos afastam cada vez mais da beleza da infância e
da capacidade de ver no outro, seja quem for, um pouco de nós. E se, também,
houvesse ombros disponíveis aos encontros inesperados. Sei que se meu vizinho
fosse um adulto, eu provavelmente não sentiria ternura nem seria tão
acolhedora. E essa certeza me joga, novamente, na realidade. Por que somos
assim? Por que, Leah, te pergunto, a infância nos deixa tão distantes de nós
mesmos?