sexta-feira, 22 de novembro de 2013

UMA CRÔNICA-ODE POR FALTA DE VERSOS COMPETENTES



Christina Ramalho


Volto a publicar uma “crônica-ode” que escrevi em 2008. Ao reencontrar o texto, senti-o ainda vivo em minha emoção...

Ter poetas entre os amigos é algo marcante na vida de qualquer pessoa. Embora poemas alheios a seus autores sejam acessíveis a nós, bastando, para isso, que busquemos tê-los por perto, quando quem está próximo de nós é um poeta (ou uma, registre-se bem), não tem jeito: algo que muitas vezes nem pensaríamos em buscar se apresenta diante de nós, instigando-nos o tempo todo a romper com a monotonia do pensamento 3 X 4. Um amigo poeta é colírio, é susto, é aquele par “anjo/demônio” soprando gracejos em nossos ouvidos. Pensamos: “o mundo é uma merda!” E nosso amigo poeta diz a mesma coisa. Mas não diz a mesma coisa. Diz mais. Diz diferente. Diz de um jeito tão danado de bom, que, de repente, passamos a olhar para o tal “mundo merda” com olhos que não tínhamos. E, como uma contradição, ao olharmos para o mundo através dos olhos que a poesia construiu em nós, ele, o mundo, também de repente parece não ser “tão merda” assim... afinal, não é que nele habita um poeta? Falo isso e me lembro do poema “Fardo (a consciência do zero, 1981)”, do livro Rarefato (1990), de Frederico Barbosa:

tenho que
tentáculos afiados tentando
fincar   a   vista   futura feito
                                oráculo

não sou cego  não sossego

Raio de poeta que nega Homero para ser um. Raio terrível de poeta que brinca de dizer quão aguda é a palavra que percebe além de nós, que guarda lince nos olhos, angústia na consciência do vaticínio que nem vaticínio é, porque não há sequer espaço para a consolidação da imagem que se previu. O mundo acelera o poema, que morre logo depois do ponto final. Isso, poeta, não use o ponto final. Não sossegue. Nunca.
Ter poetas entre os amigos é essa coisa angustiante de se ver invadido/a por esses tentáculos afiados e ter que sobreviver sem as sobras do que éramos antes do poema. Poemas cuspidos em nossa cara, em nosso cotidiano, em nossa mesquinha necessidade de pularmos contentes dentro da bolha que nos protege, sem perceber que ela é de sabão. Amigos poetas, com sua chuva de sentidos, exigem de nós reinaugurações constantes. É um “reinventar-se” que não acaba nunca. É aquela consciência de ser o solitário entre as gentes, de ser o sobrevivente cuja reinauguração jamais é suficiente, como me faz recordar outro amigo poeta, o Luiz Otávio Oliani, no poema “Fatalidade”, do livro Fora de órbita (2007):

a vida pulsa em hiatos
e não sei pedir socorro

camaleão fora do ventre
transmudo a cor à revelia

mas a morte não é daltônica

Outra vez sem ponto final. Outra espetada na consciência tão placidamente sentada na antessala do existir, isenta de poemas, como uma vida (?) confortável deveria ser. E, no entanto, todavia, contudo, porém, vem-nos o amigo poeta, com seu poema dizer não o que precisamos ouvir, mas o que precisamos ter para dizer. E a não daltônica morte visita nossa antessala soando todos os alarmes e dizendo: “Não há sala!! O que você está fazendo aí? Esperando o quê?” Ele não pede socorro, mas nos socorre. Sina maldita.
Ter poetas entre os amigos é, assim, estar sempre cutucando aquela feridinha antiga, numa espécie de ritual sadomasoquista, em que somos algozes e vítimas. Algozes, porque amamos nossos amigos poetas mais do amamos a nós mesmos, logo, com eles aderimos à desconstrução do mundo e viramos guerreiros absurdos com baionetas que atiram fonemas e ferem alguns poucos ouvidos atentos. Vítimas, porque, embebedados por suas palavras, saímos mesmo por aí, atirando em tudo, principalmente em nós. E, no entanto, todavia, contudo, porém, e todas as adversativas que os amigos poetas nos trazem, ressuscitamos a cada novo poema, como conseguiu fazer Lau Siqueira, com seu “Bobo da corte”, do livro Texto sentido (2007), quando chegar aos 44 me pareceu uma convocação iminente ao inventário. Não precisei fazê-lo. Estava ali, no poema, disfarçado em outro número:


o que sinto nesses quarenta e seis vértices ungidos
                                que ora espetam ora aguçam os sentidos
é   que  cada  momento  vai  roendo  os  ossos  e  a
dormência   do  impossível  tomando  conta  de tudo
que é a b s o l u t o

o   que   comove   nesses   anos   cumpridos    entre
verdades amargas  e  doces mentiras é  que  apesar
de  tudo   ainda  pude semear  as  sobras  da  minha
inquietude

poemas    derramados  espalhados  no   tabuleiro  do
que     tanta   vez   provoca   o   asco    afirmativo   da
existência

o    que    colhi    entrementes  nem   sempre   foi   da
melhor   safra   mas   ainda   estou   aqui   escrevendo
versos    ligeiramente   aptos   às   consagrações    do
esquecimento

o    vazio   dos    olhares   atônitos   já   não    apavora
o       medo      há       muito     perdeu     o        sentido

ouço   o   ruído das  horas passando ao  largo  de uma
vida   que   se   cumpre para muito além das paisagens
guardadas na retina

e   sorrio   como   se   fossem  oráculos  os  galhos   do
                                cajueiro   que    vejo    pela   porta    entreaberta  sob  o
mantra   estridente   dos  sagüis que  resistem
nos esgares da mata

habito meu silêncio
e ouço atentamente a imensidão e a quietude
de tudo que grita e se move

o que está posto é muito mais do que posso
por isso sigo em frente
derrubando os muros que possam afastar
as matilhas da ternura

as águas que passaram nesse rio jamais ficaram
turvas por isso não me curvo e

vou indo vou

                                                                      rindo de tudo

embriagado com minha própria sede

como um homem que transita pela consciência
dos caminhos jamais percorridos

vou passando

passeando pelo mundo



Raio de amigo poeta que sempre sabe antes de nós, que parece rir das neuroses que, sob suas rédeas, se fizeram metáforas, esvaziando as reverberações super apelativas de nossas emoções indomadas. Ele doma. Molda. Apropria-se. Indo e rindo de si, de tudo, de nós, passeia mesmo. O que, em nós, é inventário, nele é verso malemolente, rio sinuoso de palavra trânsito. Que passa. Mas sem ponto final. Outra vez. E o “mundo merda” é tão mais que isso, só porque ele está ali. O inventário dói. E batemos palmas para a dor, porque nem mais dor sabíamos sentir.
Ter poetas entre os amigos é, enfim, ver-se, como eu, ridiculamente compelida ao texto ode, ao puxa-saquismo deslavado, àquela vontade de dar um abraço bem grandão nesses sujeitos tão descaradamente sábios e néscios, malabaristas 24 horas por dia caminhando nos fios do desejo que a palavra tece e arrebenta bem no meio da caminhada. Cai o poeta e nos leva (amigo...) com ele. Do tombo, surge outro poema. Nele. E outro hematoma. Em nós. Merda de mundo legal este em que “merda” pode ser bom agouro. Sorte. Isso é ter poetas entre os amigos.


Março de 2008

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

DIAS MODERNOS



Flávio Passos
“BRIMMMMM”, 6 horas e o despertador toca. Banho, café, ônibus. Trabalho puxado: três aulas de gramática e duas de literatura. Voz ativa, Machado de Assis, não, isso não é aposto.  Alunos não prestam atenção, o jeito é apelar com frases sobre o timão. 12 horas, retorno para casa, almoço, soneca, depois um saboroso café. Meu tempo é curto e ainda preciso revisar os meus resumos. Resenha, fichamento, artigo, onde será que coloquei meus livros? 18 horas: Faculdade: quebra a cabeça; mas tem diversão, na hora do bandejão. Não sei mais quem é o crítico aqui Afrânio, Bosi, ou talvez Amossy, não sei, agora já me perdi. Quem sabe o ethos seja mostrado no ato de dizer, mas é influenciado por quem vai ouvir. E quem ousa ouvir minhas vozes, veladas, veludosas, vozes? Talvez Cruz e Souza com sua aliteração? Não sei, mas acho que minha cabeça que pensava não consegue pensar mais em nada. E assim volto para casa, cansado por mais um dia tumultuado e turbulento. E, influenciado por Drummond, sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob o sarcasmo e sob a gosma e o vento, eu resmungo e choro e esperneio e grito por causa deste tempo que insiste em brigar comigo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

SENTIMENTOS CIBERESPACIAIS


Éverton Santos

Em tempos de ciberespaço, o “kkk”, o “rsrs”, o “hahaha” ou o “shashashahshash” substituem o verdadeiro riso por uma forma artificial de prazer e de descontração. Com a ajuda dos muitos emoticons - desenhos capazes de sintetizar e reproduzir o estado de espírito -, a tarefa fica ainda mais fácil, porque é simplesmente colocar uma cara feliz, sorridente, ainda que isso não reflita, literalmente, o comportamento e o ânimo daquele que o usa.
Do mesmo modo acontece quando a emoção é o choro. Posso dizer que você me fez chorar só pra fazer com que se enterneça e se sinta mal, como se isso fosse capaz de criar uma conexão, através da compaixão forçada. Você, do outro lado da telinha, não terá como comprovar - a menos que tenha uma webcam ligada! - se estou me derramando em prantos soluçantes. Chega-se à conclusão de que as lágrimas não precisam mais ser o líquido salgado produzido pelos olhos. Basta simplesmente representá-las, desenhá-las numa face deprimida e pronto: estou chorando.
E quem quiser que prove o contrário.
No caso da amizade e dos vínculos afetivos, a coisa se torna mais complexa. Cativar alguém, torná-la próxima, isso é algo que deve levar tempo. E eu disse “deve”. Ser cordial é fácil, até mesmo um psicopata ou um sociopata conseguem ser. Esbanjar simpatia e posar de “bom moço” são papéis que não é preciso ser ator para poder representá-los com perfeição. Logo, ter os sentidos atentos nunca é demais. Ser cauteloso ainda continua sendo uma forma eficaz de não ser enganado.
Na verdade, parece que a carência afetiva é a causadora de tudo. Basta ser carinhoso, ter um bom papo, dar atenção e demonstrar interesse: são estes alguns ingredientes para uma “amizade virtual” bem sucedida. Acrescente-se a isso o contato contínuo, a compreensão, o bom humor... Tais atributos são valorizados dentro e fora do ciberespaço, mas parece que, na era digital, sai na frente quem convence pela imagem construída por intermédio da internet.
Uma vez, uma prima me disse que as pessoas das redes sociais dela eram mais legais que as da vida real. Apenas pelo contraste entre o mundo “fictício” e o “real”, já me interessei pelo assunto. São quase que completamente diferentes. Isso porque, nos sites de relacionamento, posso ser quem eu quiser, posso montar perfis à vontade, além de estar ao meu alcance nunca evidenciar os maiores defeitos da minha personalidade. Sem contar que é bem mais legal uma conversa cara a cara, um abraço corpo a corpo, um passeio que não se limita a abrir e a fechar páginas da web. Foram estes os meus argumentos para mostrar à minha prima que eu - que, de fato, existia - tinha o potencial que todos os amigos virtuais juntos não conseguiriam ter: eu tinha - e continuo tendo - uma existência concreta, e não encarcerada em quadrados digitais.
 Sim, a internet revolucionou o mundo; sim, é possível manter contato com pessoas que estão há milhares de quilômetros; sim, há quem tenha encontrado o best friend forever ou o amor da vida utilizando esse meio de comunicação cuja importância, incontestável, pode levar a crer que, se fosse suprimido, a humanidade, talvez, não conseguisse mais progredir. Mas não é sobre isso que estou falando. Não é uma questão de importância, mas sim de ser quem se é.
Estão em pauta os sentimentos: o riso saudável e vivo; o choro que escorre pela face; a amizade como laço indissociável capaz de durar anos infindos; o amor puro, que cresce através do convívio, das descobertas diárias. Isso, como diz a propaganda, não tem preço.
Eis a era do medo e da desconfiança. Eis o tempo em que parece fácil manipular os outros simplesmente fingindo ser aquilo que nunca se pretendeu ser ou fingindo sentir o que nunca sentiu. Como consequência, é tempo de escancarar as portas dos olhos e perceber que muitos são os que podem conhecer o seu nome, mas poucos, o seu sobrenome. Ser solícito e amigável não significa excluir ninguém. Mas deve significar ser seletivo. Deve significar estar atento.

Humildade sempre; ser verdadeiro... também.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

À PROCURA DE UM SORRISO



Christina Ramalho

Folheava distraída o caderno de “Classificados”, quando um anúncio lhe chamou a atenção: “Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto”.  Eu, hein, que tipo de anúncio é esse? Cada coisa que aparece... Quem em sã consciência pensaria em publicar algo assim? Procuro um sorriso... Ridículo... Bem, assim ela pensou, mas, ridículo ou não, o tal anúncio não lhe saiu da cabeça. O dia passou, arrastando suas horas sem novidades, e a lembrança do texto ia e vinha, provocando-lhe reflexões.
Procurar um sorriso para enfeitar o rosto. Que significado teria isso? Alguém triste e solitário fazendo um desabafo? Alguém à procura, na verdade, de um amor? E começou a pensar no próprio sorriso. Na verdade, andava sem motivos para sorrir. Lembrou-se do estado terminal da mãe, da falta de paciência do pai, sempre envolvido com o amor quase secreto que se arrastava há anos, da separação do irmão, do desemprego da irmã... Desfiou um rosário de lembranças sem sorrisos. Recordou-se da falta de dinheiro, da recente síndrome do pânico, da situação difícil da empresa onde trabalhava, do choro do bebê recém-nascido que lhe exasperava durante as madrugadas, do excesso de peso que não conseguia vencer... Nossa, pensou, chega disso! Que vida é essa? Será que também andarei carente de sorrisos?
Os problemas sumiram do pensamento. Mas não apagou a imagem da mãe. Tão magrinha, tão frágil, tão querida... Viu-se sentada na cadeirinha de vime enquanto a mãe lhe trançava os cabelos. Filha, você é tão linda! Depois se lembrou das longas conversas sobre namoros, paixões, meninos, rapazes, homens. Amiga e carinhosa. Essas eram as melhores palavras para definir sua mãe. Sorriu, antecipando saudades, umedecendo os olhos, mas sorriu, docemente.
O pai... Apesar de tudo, não conseguia ter raiva dele. A mãe definhando, o pai amando... A mãe morrendo, o pai se culpando... Tentava compreender o sentido de tudo aquilo. O pai nunca fora um bom marido. Essa era a verdade. Assim como era verdadeiro o ar de menino que mantinha no rosto desde a chegada daquela paixão. O mesmo ar de menino que ela registrara em suas memórias de filha mais velha. Ela e o pai na loja de animais, escolhendo um cãozinho. Escolha, filhinha, escolha um. E saíram de lá cheios de pacotes e acompanhados do Tuti, um beagle que lhe daria muito trabalho e muitas alegrias. Sorriu novamente, conseguindo separar o pai do marido da mãe.
O divórcio do irmão foi surpreendente. Dez anos de namoro, um de casamento. Curiosamente terminaram tudo sem alarde, sem brigas... Ao contrário, esbanjavam carinho um pelo outro. A família parecia sofrer mais que os dois. Recordou-se dos apelidos tenebrosos que os dois usavam. Tuquitinha, Tutuquinho, Flofi Flofi, Lelezinho, ... Usavam e continuavam a usar! Sorriu mais uma vez. Curiosos aqueles dois...
O desemprego da irmã era uma situação passageira. A irmã era brilhante. Claro que logo apareceria uma colocação... Talvez se angustiasse mais do que a própria irmã, que, naquele momento, estava envolvida com simpatias para arranjar emprego. Faladeira, a irmã ligava dia sim dia não relatando as experiências inusitadas. Ao final do telefonema, a irmã sempre tinha uma palavra esperançosa, que consolava a mais velha, como se o problema fosse desta. O otimismo da irmã lhe preencheu o coração. Sorriu novamente.
Dificuldades financeiras? Quem não as tem? Conseguiu achar engraçado o dia em que, enlouquecida com as dívidas, fez uns colarezinhos de contas coloridas e saiu oferecendo vizinhança afora. E não é que vendeu tudo? Riu de si mesma. Riu também quando lembrou ter chorado ao mesmo tempo em que o filhinho por puro desespero. Cala a boca, neném. Preciso dormir. Preciso dormir. Ai, Meu Deus, o que eu faço? Ele dormiu. Ela também. E, no dia seguinte, se enterneceu com o cheirinho de bebê recém-acordado que o pescoço do filho exalava. Sorriu, cheia de amor. E o pânico que lhe fez pular no colo do vizinho quando o elevador enguiçou? Até hoje percebia o sorrisinho fraterno que o sr. Amadeu lhe destinava quando se encontravam... Que vergonha! Mas riu... O emprego estava por um fio. Assim que terminasse a licença, voltaria. Porém, o que encontraria? O salário atrasado, o chefe emburrado, insatisfação geral... Mas a última confraternização de Natal tinha sido tão boa, tão divertida. Paulinha, bêbada, finalmente se declarou ao colega do DP. O Bastos, palhaço como sempre, dançou como se fosse uma vedete, jogando charme para o diretor da empresa. Era uma turma engraçada. E sorriu. Do sorriso passou às gargalhadas... Não é que ela ontem agradeceu o grito “Gostosa!” que ouviu ao passar pelo bar da esquina? Ah... Tinha que agradecer... Há tanto se sentia uma mulher desengonçada, sem atrativos... Aquele “gostosa” feio, mal educado, foi “tuuuuudo de bom”... Só eu para fazer uma coisa dessas, pensou sorrindo...
Procuro um sorriso para enfeitar meu rosto. Voltou ao jornal. E escreveu uma carta para remeter à caixa postal do autor do anúncio. Disse a ele (ou a ela), o que eu, agora me voltando para os sorrisos de que necessito, gostaria de dizer a vocês. “Infelizmente, amigo, amiga, (vocês) o sorriso sincero, que enfeita o rosto porque revela a alma, não está sempre em nossas vitrines. Cede lugar aos bicos, aos dentes trincados, ao muxoxo, ao mau-humor. Mas, de um modo ou de outro, a lembrança de momentos especiais, de pessoas especiais, traz o sorriso de volta e enternece a vida.” Ela, a personagem, ainda disse ao destinatário: “Procure o sorriso dentro de você. Eu encontrei o meu”. 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A MATÉRIA



Luciana Almeida

Sentada numa cadeira de balanço, lembrei-me das diabruras que cometi quando criança. Lembrei-me, por exemplo, que quando tinha 7 anos, num ato de alegria e inocência, quebrei uma vasilha de cristal datada de aproximadamente dois séculos. Era uma relíquia, pertenceu ao meu bisavô que a adquiriu numa viagem de negócios ao Oriente Médio. Lembro da tia ao caminhar lentamente em direção ao seu quarto, naquela casa antiga e estreita, carregando consigo um vestido passado e pendurado num cabide. Nesse momento, as batidas palpitavam desenfreadamente, pois para chegar ao quarto teria que passar pela sala. Em linha reta caminhava, parecia que não iria notar. Quando, finalmente, estava prestes a concluir o caminho da sala, sentiu que pisou em algo. Era um caco de vidro.
  Eu, virada de costas, fingindo que a TV ocupava a minha atenção ouvi-a dizer: - Mas o que é isso? Continuei a olhar a TV. Ela prosseguia: - O que quebraram aqui? Em seguida, fitou a mesinha onde punha a vasilha e percebeu o espaço vago. Isso soou como um convite para não entregar a infeliz criatura que quebrara o objeto de cristal. As pernas trêmulas, os suores na tez ingênua e dissimulada denunciavam-me. Busquei palavras e não encontrei, nem a sensação que tomava conta de mim poderia aqui descrever. Mas pensei no quão maravilhoso é não sentir culpa, maravilha é ser como uma pluma, leve e aliviada. A situação ficava cada vez mais tensa, os gritos poderiam ressoar a qualquer segundo e serem esticados por horas.
Minha presença era a minha principal rival. Só havia eu por ali. Não tardou o esperado e a Tia Eulália disse num tom grosseiro: - Foi você quem fez isso? Não sei onde vou parar com tantos prejuízos nessa vida minha! Continuei a ficar calada, tentando encontrar alguma maneira de desdizer tudo. Não consegui. Criança não abriga mentiras por muito tempo. Já sem suportar tamanha pressão, entreguei-me: - Fui eu tia, estava brincando e a boneca voou e bateu na sua “vasia”. Desculpa. Nenhuma palavra a fazia esquecer dos destroços espalhados ao chão, o apego por aquele objeto parecia ser maior do que a capacidade de compreender as travessuras involuntárias vindas de uma criança. Eram só 7 anos! A tia não gostava de castigar seus sobrinhos, deixava esse encargo com os pais que, para ela, sabiam aplicar melhor o corretivo necessário, ao invés de uma senhora idosa debilitada em algumas de suas coordenações motoras. Como recompensa por tal favor, minha tia contou para a mamãe, que contou para o papai. Preço pago, castigo consumado.
Nesse instante matutei sobre o que seria mais vago: aquele diminuto espaço que poderia ser substituído por tantos outros enfeites que a tia colecionava ou sua raiva e desespero por alguém que estraçalhou um simples e insignificante objeto. Ignoro os apegos. Desprezo-os. Prefiro os atributos abstratos da vida, os valores de glória. E, hoje, me pego contemplando essa breve reminiscência, voltando o meu olhar para esse passado onde muitos dos sentidos da vida eram banhados pela matéria. Talvez não seja só um passado. Não, não é.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

FIM DE RELACIONAMENTO



Éverton Santos

Para escrever esta crônica cheia de olheiras, deixo que o tempo seja nada mais que o barulho dos ponteiros. Neles, a noite cai, chuvosa, como em lamento: e vejo as ruínas de um cemitério que antes era palácio. Perder um amor é tornar-se um vivo-morto.
Cai por terra um ciclo formado por dias, meses, anos; sms, músicas e presentes; ficadas, namoro e casamento. O que antes era uno, mesmo sendo duplo, volta a ser dois, dissolvido pela traição, pelo desgaste, pela distância. O riso ressoante é substituído pela lágrima abafada pelo travesseiro; as mãos já não se dão, esfriando-se, solitárias; o coração - núcleo da emoção - guerreia contra o cérebro - centro da racionalidade -, numa batalha em que loucura é consequência da devastação de um devastador conflito interno.
Perder alguém... Mas será que algum dia tivemos esse alguém? E o que fazer com as lembranças, com as memórias, com aquilo que fica daquele que vai? Porque algo sempre fica. Seja saudade, tristeza, decepção, esperança. E há vida depois de tal fatalidade? Pois, na véspera, no dia último em que vida era vida, tudo estava em paz, mas, num rompante, palavras duras em voz de violino violentaram a alma, enegreceram um céu dantes límpido.
Então, inicia-se o fim. Às vezes, inevitável; outras, necessário; por vezes, dolorido.
E há o reerguer-se. Mas como, se, depois de tudo, os outros são os outros e só?! Porque... porque as declarações ficam cravadas, as promessas são recordadas, os futuros desenhados nos crepúsculos coloridos, ah, estes continuam luzindo. E com força! Ficam, abandonadas no passado, a fera solta que encontrou domador; a carência apaziguada pelos beijos ao luar; e a incompletude que se completou enquanto se nutria da outra presença!
E os amigos em comum? Como é que você ‘tá’? Você supera. Talvez tenha volta. Não se preocupe, outra pessoa virá. As malditas comparações, o medo de encontrar outra pessoa que traga à tona os sofrimentos silenciados. Na verdade, o medo que mais cresce é o de saber que é possível amar de novo, já tendo amado uma vez! Será que o poço do amor um dia seca?
No entanto, nem tudo está perdido, pois há vida, aquela mesma que se diz não pertencer mais a si, depois de ter sido dada a quem a desperdiçou. Mas, o difícil ainda se enreda: tempos infindos pensando naquele alguém que te roubou de ti. Já no plano real, ir de volta pra casa, onde haverá apenas um prato na mesa, uma cama fria: calar o caos. Esquecer quem amamos é como tentar se lembrar de quem nunca conhecemos: impossível usufruto.
“O sândalo perfuma o machado que o feriu”. Isso passa, não é? É só ficar ali, inerte e inerme, me deixa aqui, quieto, amanhã é outro dia, isso passa. E se vê a depressão de onde é possível se jogar no escuro. Agora, só existe isso em mim: ausência de ti, por isso a escuridão.
E, por mais que pareça cocaína, afirmo: é só tristeza. A multidão me cerca, mas não me preenche. Fiz planos, tracei metas, morri no litoral, onde o vento nos abençoava. A palavra “término” não existia, pois eu só pensava no “final feliz”, sem saber que, depois do começo, o que viesse começava a ser o fim. E este chegou, se instalou, foi meu homicida.
O bom de chegar ao fim do poço é que a única solução é voltar para a superfície.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

VALEU A PENA

1

Flávio Passos

[...] há um certo prazer até no funeral e suas lamentações. Indiscutivelmente a tristeza está presente pela perda da pessoa, mas experimenta-se um certo prazer, graças à memória, em recordá-la e vê-la diante de nós em meio aos efeitos de sua vida. (Aristóteles)

Falar sobre a morte de alguém querido é algo que sei pouco, talvez pela quase nenhuma experiência que tenho. Porém, é algo que me deixa muito curioso.
Alguns dizem que do pó viestes ao pó retornarás, outros falam que, após a morte, reencarnamos no corpo de outra pessoa, além disso, há os que afirmam existir o céu e o inferno. Ah, o inferno! O reino do Deus Hades e sua esposa Perséfone, deusa da fertilidade, para onde vão as almas dos mortos depois de seguirem viagem com o barqueiro Caronte pelas águas dos rios Estige e Aqueronte.
Independente do local para onde vão os recém-mortos, como será que fica quem realmente amava alguém que se foi? Acredito que seja uma dor inconsolável e torturante, que perdura durante muito tempo. Saber que não se verá mais aquela pessoa, não se sentirá mais seu cheiro, não se poderá mais tocá-la, beijá-la...

Talvez seja como terminar um relacionamento contra sua vontade. Você tinha todos os momentos a pessoa ao seu lado, riam, choravam, brigavam, faziam as pazes, dormiam juntos, faziam planos para o futuro, e tudo fora interrompido. A vida passa a não ter mais sentido, sente-se dividido, fica faltando uma parte que foi embora e que não vai voltar mais.
No entanto, essa dor gera as lembranças dos momentos em que essas pessoas foram felizes, e eu acho, tal como disse Aristóteles, que a melhor coisa a fazer, nessa situação, é recordar o passado e sentir que tudo que foi vivido valeu a pena.


1. À esquerda, Cronos, deus do Tempo, segundo a Mitologia Grega. À direita, Fukurokuju, deus da Felicidade, da longevidade e da boa sorte, segundo a Mitologia Japonesa. 




sexta-feira, 30 de agosto de 2013

ÂNIONS EM SONHOS


Rosângela Trajano

Não sei o que quero da vida ou sei e digo não saber, não sei. Às vezes quero tudo, um tudo que é tão pouco. Noutras apenas realizar meus sonhos. Penso que no coração fica um pouco do que eu podia ter sido e por medo não fui atrás. Desassossego. Gostaria de ter em minhas mãos duzentas pilhas de Daniell para brincar de ligar sonhos. Não sou um ânion, sou um cátion. Vou ver o espelho no meu poço de desejos, de dúvidas, de ânsias que ninguém ousa jogar uma moeda para me alimentar. Quero, sim. Quero todos os sorrisos que o mundo puder me oferecer. Dizem que o sorriso cura doenças. Estou doente. Ontem perdi um sonho. Procurei meu sonho nas estantes e não o achei; procurei meu sonho no buraquinho do telhado em cima da minha cama e ele lá não estava; meu sonho perdeu-se em meio a uma multidão de funções e algoritmos que ficaram por responder ou tiveram respostas ao acaso. Senti medo. Medo de tirar a roupa e nunca mais ser eu mesma. Fui dormir com a roupa da rua. Roupa da rua cheira a um dia fora de casa. É como se neste dia eu tivesse guardado meu sonho num lugar tranquilo do meu quarto bagunçado para ir fazer não sei o quê. Esse não saber me desenha na ilusão da última camada do Hidrogênio. A eletronegatividade da esquerda para direita me grita: és forte! Sou não. Sou apenas uma menina que cresceu sem saber fazer escolhas, sem saber que os sonhos às vezes brincam de esconde-esconde. Ah, o sonhar! Eu fui princesa que morava numa casa com quatro paredes e panelas espalhadas pelo chão nos dias de chuva... as goteiras? As goteiras foram minhas companheiras quando eu não tinha com quem conversar sobre a vontade de ser princesa e morar num castelo. Eu quis, eu quero, eu talvez queira mais tarde. Atrás de mim há um jardim com flores de garrafas pet. Vida, vida, vida não faça eu sentir tantas dores. Me deixe sonhar os sonhos de uma noite no sertão. Case comigo, sonho passageiro. Hoje passei o dia estudando trigonometria e o seno de quarenta e cinco graus não é maior do que o frio que sente meus pés neste instante. Buuummm! Explodi o laboratório de química! Era uma fórmula de cloro mais iodo. Me tragam de volta, eu só sei fazer poesia e sonhar! E se os sonhos viajam com as nuvens amanhã cairei em pingos na Terra, pingos que descerão as ladeiras da mediocridade para um encontro com o artífice pai da realidade. Sonho, sonho sim, sonho acordada para nunca esquecer que o os planetas giram em torno do sol, não somos o centro do Universo, sejamos mais gente.

sábado, 17 de agosto de 2013

CRÔNICA-RELÂMPAGO



Christina Ramalho

Estou encolhida embaixo da cama, enquanto fora a tempestade despeja sua ira molhada sobre a face da terra que, sôfrega e revolvida, abre-se em veios e esparge as águas-lágrimas na superfície de seu corpo violado.
Acendo a lanterna e ilumino a promessa do texto. Ali, embaixo da cama, palavras far-se-ão tempestades, fundarão veios, violarão a plenitude imaculada do papel.
Súbito, um raio atravessa fogoso a costada negra da noite e divide o infinito em antes e depois da explosão.
Sincrônicas e ritmadas, curvas insinuantes de letras que se amarram atravessam fogosas a costada branca da folha. A crônica irrompe definitiva e coloca o medo embaixo da cama.

         Comigo.

sábado, 10 de agosto de 2013

TEUS OLHOS



Éverton Santos

À Christina Ramalho, musa azul.

É só procurar na internet que encontra. Põe lá no Google, na enciclopédia digital, “o lago mais azul do mundo”. Constam informações de que o Peyto, no Canadá, é o suntuoso deslumbramento em recinto de água doce, de cor mais que celeste. Se acaso procurar pelo “mar mais azul do mundo”, aí é que se cria a danação: entre o das Maldivas e o da Praia do Francês, em Alagoas, talvez a escolha seja facilitada apenas através do contato empírico e não somente pela via indireta, a viagem pela tela do computador, no ciberespaço. De azuis são feitos esses pontos geográficos na Terra localizados. Não são, porém, para mim, o azul mais vivo e místico que já vi.
Garanto e dou fé que de nenhum azul já descrito são banhados aqueles olhos. Sim, são azuis, mas de uma cor que não está em escala monocromática alguma, tesouro de uma forma só. Pode procurar os tons que quiser, buscar em sites de todo o mundo, e nada igual se achará. Se quiser, então, investigue em outros olhos, perscrute firmemente rostos que para eles servem de moldura. Mas, não, julgo com tamanha certeza que não existe algo que se aproxime da nuança peculiar somente encontrada naquela ofuscante e sublime visão tua, a qual merece um altar.
Um girassol da cor do teu cabelo. Um lago, um mar ou um firmamento não há da tonalidade dos teus olhos, simples assim. A tranquilidade que entoam é tal qual o cântico dos cânticos, o bálsamo de mais valia, o oásis de frescor sensível que eleva e redime. É a paz sonhada em Gaza, a rosa do povo, a salvação que pisca em corpo que pulsa. Teus olhos são vida, e o azul deles é segurança, abrigo fortificado à beira-mar ou floresta. Reduto de esperança e de sincero acolhimento.
O fascínio e a sedução, poesia. De onde vem a luz somente tua? Porventura, nos teus olhos há de Calipso o feitiço, por acaso aprisiona e deles faz arma? De que forma consegues capturar e tornar cativo, por livre vontade e entrega total, todo aquele que com teu olhar, por sorte, se defrontar? São espelhos d’água musicados, e que, no embalo do teu corpo, na tela de pintura que é teu rosto, merecem o galardão de maior apreço, o reconhecimento pelo estonteio que arrebata.
Da musa como um conjunto, da perfeição inventiva de dois artistas, somente os olhos fotografo: apreendo, de forma simplória (pois estás no cume do Olimpo por mim inatingível), a inebriante luz que o piscar jamais esconde. Açula o pensamento, me faz intelectual e criativo, controla a minha mente e até túmulos clareia. A noturna beleza dos azuis representa tua integridade e sabedoria, tua verdade e confiança. E, agora, penso eu: de que cor mais oportuna seriam estes espectros? A garota carioca, apaixonada pelo mar, teria dele roubado um pedaço escondido do que reflete e refrata? Seria esse o teu segredo, sereia de todas as águas, de Iemanjá serias afilhada?
Tua mãe muito contemplou da piscina as cores, ou o céu a correspondia quando, para ele, ela os olhos volvia? Aturdido ainda fico, pela ideia que em mim veio habitar. Terei eu ficado refém, perdido minha alma, sem ao menos isso perceber? Escravo liberto e devoto, fanático por um olhar de relance que seja? Talvez. Apenas sinto em mim latejar o desejo de eternizar o brilho azul, esboçando-o de forma lírica. És, indubitavelmente, um poema épico formoso e a ti dedico uma festa maior que carnaval: essa, podes acreditar, é a celebração dos teus olhos, e isso compreende o teu ser por completo e inteireza. No inadiável do querer dizer, na ruminante imaginação minha, no que em mim mais forte pulsa e se faz rei, venho proclamar que os teus olhos sempre terão a luz que nenhum Natal, iluminado que seja, jamais em nunca alcançará a tamanha magnitude que comportam.

Porque, em mim e em tantos, o teu olhar, como a lua no céu, sempiternamente, vive. Pontos que faíscam no horizonte do sem-fim. Espelho do mundo, filho das constelações. Enfim, por contemplar-te em demasia e insuficiência, como minha religião, estou também completamente azul.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O TEMPO



Luciana Almeida

Sempre soube que o tempo é um campo de batalha. Às vezes, é feroz, se desliza nos minutos do dia como um anestésico duradouro, às vezes, padece na lentidão e torna cada segundo um calvário de tormento. Hoje algo em minha vida confirma que Epicuro foi feliz em seu pensamento sobre a felicidade. Ter a oportunidade de suprir as necessidades físicas, sem transtornos ou empecilhos, não tem preço.
Mas a filosofia que escolho é outra. A impossibilidade de realização do necessário é um indício de que o tempo precisa ser doloroso, penitente e também rebentar o sossego como um espinho da loucura. O sofrimento e a dor precisam ser entranhados na alma para darmos o devido valor ao mar de rosas quando formado; seja no olhar, no acontecimento de algo inesperado ou numa lembrança incandescente.
Luto contra as noites sombrias e lacrimosas como uma gladiadora que não aceita perder seu escudo. Depois de algum tempo, a coragem murcha e me adapto à situação. Quando não há alternativa, resta apenas aceitar e... esperar, esperar, esperar... Faço do tempo o meu agente transformador, escolho Deus como o meu agente guiador.


sexta-feira, 19 de julho de 2013

E VOCÊ, TERIA CORAGEM?




Flávio Passos

Tinha apenas sete anos quando surgiu no colégio o mito da Big Loura. Segundo contavam, era uma mulher alta, loira, de vestido branco que aparecia dentro do banheiro da escola. Para fazer com que essa criatura aparecesse, era necessário puxar a cordinha da descarga, bater palmas e dizer “Big Loura, Big Loura, apareça, apareça”, tudo isso devia ser repetido três vezes, respectivamente. Ao cumprir o ritual, um buraco negro se abria na porta, bloqueando sua saída, e a misteriosa mulher saía de dentro dele.
Depois que eu soube da existência dessa mulher, deixei de usar o WC da escola. Mas aí tinha o banheiro de minha casa, e eu sempre implorava para que uma de minhas irmãs fosse comigo e me esperasse na porta.
Essa lenda me atormentou por muitos anos, mas, um dia, eu e minha irmã mais velha resolvemos enfrentar a famosa Big Loura. Trancamos a porta do banheiro e começamos o ritual: puxamos a cordinha da descarga três vezes, batemos palmas três vezes e, por fim, dissemos: “Big Loura, Big Loura, apareça, apareça. Big Loura, Big Loura. Apareça, apareça. Big Loura, Big Lou-ra”... Eu não consegui terminar o ritual. Abri a porta com voracidade e saí em disparado para fora do banheiro, correndo de algo que eu nem mesmo tinha chegado a ver e nem sei se apareceu.
Hoje me lembro desses fatos e começo a rir sozinho. Penso: em como somos ingênuos a ponto de ter medo de algo que nunca vimos e nem mesmo sabemos se existe. Talvez esse seja o poder que o mito tenha: o de fazer com que as pessoas acreditem naquilo que jamais chegaram a ver, mas insistem em acreditar que existe e é como realmente os outros pregam.

Sendo verdade ou não, eu, até hoje, não me arrisco a praticar o virtual para ver a Big Loura. 

sexta-feira, 12 de julho de 2013

QUEM RESISTE A UMA LÁGRIMA?


Éverton Santos

E observem que também é com as lágrimas
que o homem lava as aflições do homem.
(Baudelaire)

Não, não me diga que você não se compadece ao ver alguém chorando.
A lágrima é como o sangue: é aquilo que deve ficar do lado de dentro porque, se for externalizado, algo aconteceu, um corpo estranho perturbou a harmonia da casa. Mesmo que você não chore ao presenciar o prantilégio de alguém - o que é normal -, acho quase inevitável não despertar um engasgo momentâneo na garganta inexpressiva, faltosa de palavras para serem manifestadas em socorro.
Os olhos podem clamar perdão ou suplicar um beijo; às vezes se deixam molhar por quem viaja, chovem - certamente - por quem vai e não pode voltar. Liberam água salgada, mas que pode vir por motivos doces: o reencontro, o nascimento, o riso desbragado, o amor provado. A lágrima é silenciosa, mas comunica; vem sozinha ou em bando; descarrega tensões, redime corações, e principalmente: expressa dor - seja do corpo, da mente ou da alma.
A lágrima é uma linguagem universal: seduz, persuade, dialoga. Ser sensível ao choro, ser amistoso à partilha da angústia, estar a postos para ouvir o atribulado, tudo isso revela a capacidade de sair de si para ir ao encontro do outro. Quem chora quer ser abraçado, confortado, quer se sentir seguro quando sente a falta de chão. A lágrima tem poderes que a nossa vã filosofia ainda desconhece.
Não, eu não nego... Sou daqueles que não resistem a uma lágrima.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O PÃO DOCE DE CREME QUENTINHO DA PADARIA DA ESQUINA


Christina Ramalho

Longo. O título é longo, tal como me parecia o caminho, que se iniciava na porta de meu apartamento, passava por um elevador preguiçoso, alguns andares, dois portões de saída do prédio, dois sinais de trânsito e dois quarteirões, até terminar no balcão da padaria da esquina, de onde surgia a deliciosa imagem dos pães doces de creme quentinhos, da fornada das quinze horas.
É impossível esquecer a força aguda e penetrante daquele aroma indefinível, que tornava minhas tardes especiais, com sabor de calmaria, infância e aconchego.
Lembro-me de que, ao olhar para o relógio e ver que quinze horas se aproximavam, nem me lembrava de qualquer resíduo de cansaço. Prontamente punha-me devidamente vestida para sair à rua, em busca do doce que me preencheria a tarde. Saía, carregando o dinheirinho amassado no bolso, ansiosa, por pressentir que logo um diabinho sadomasoquista viria soprar em meus ouvidos: “Ande, corra...! Vai acabar, vai acabar...!” E eu andava rapidamente, vencendo as calçadas com determinação e, confesso, com uma espécie de ansiedade gustativa que me enchia a boca de saliva, antecipando o gosto açucarado que logo viria.
Metros antes da entrada da padaria, o perfume macio dos pães parecia indicar o trajeto a ser cumprido. Estavam lá. Prontos para minha fome de alegria.
Sempre escolhia o mais parrudo, que tivesse o creme mais farto e o aspecto mais alegre e açucarado. Delicadeza era o que eu esperava do padeiro no momento em que separasse o pão escolhido dos irmãos de vitrine. Um gesto mais brusco, e a pinça poderia macular a carne macia do pão doce tão analiticamente escolhido... De igual modo, vigiava as mãos que envolviam o pão no plástico protetor e, em seguida, no papel cinza logo agarrado pelo barbante fino. Ai, se me ferissem o escolhido!
Passava no caixa, deixava o pão vertido em dinheiro e levava o original para casa. Saía da padaria em ritmo ainda mais acelerado que na ida. Não queria que o pão esfriasse. E, por isso, mais uma vez longuíssimo se me fazia o tal caminho. Sentia nas mãos a quentura doce do pacote e um resquício do aroma, que, instigando-me, lembrava-me do sabor de que logo desfrutaria.
Abria a porta do apartamento e corria para a cozinha. Recordo-me das tantas vezes em que me deixei cercar pela dúvida: “Dá tempo de colocar o café no copo que antes guardara geléia ou o pão vai esfriar muito?”. Quase sempre me decidia pelo café, também saboroso no ex-copo de geléia, que, nunca descobri o motivo, parecia tornar o café mais café. Desconfio que a falta de cerimônia do ex-copo de geléia deixava o café à vontade para ser autêntico!
Ah... E como não dizer? Completando o ritual, a faca rompia a unidade branca da massa cheirosa, e a margarina invadia discreta a harmonia do pão. Anos mais tarde, nos tempos das vacas menos desnutridas, também haveria a fatia fina de queijo prato, imprimindo ao conjunto um sabor esplêndido de subúrbio, fatura e simplicidade saudável.
Morder meu pão doce de creme, quentinho, tendo como cúmplice o café preto no ex-copo de geléia, era um oásis na tarde esquecida onde se escondiam um apartamento de subúrbio e uma moça quase simples, não fosse a mania antiga de fazer poemas.
Às vezes, eu cometia a tolice da gula e comprava dois ou três pães doces de creme quentinhos. Não me deixou boas lembranças tal tolice, pois, invariavelmente, a saciedade de medida perfeita era substituída pela sensação indigesta do excesso. Bom mesmo era o pão doce de creme quentinho e único em sua justeza quase divina.
Terrível é ter que confessar o quanto me doía, vez por outra, ter que, por boas maneiras, dar um talho quase generoso numa das extremidades do pão, porque uma companhia inesperada também se encantara com a magnitude da guloseima! Deus Meu, quanta avareza! Mas não era a mesma coisa comer o pão maculado pelo alheio olho guloso...
Um dia, a decepção. A fornada passaria a sair às treze horas. Sandice! Disse eu. Quem celebraria o pão doce de creme quentinho com o estômago invadido de almoço? Algo ali se perderia no tempo. E o relógio nunca mais deu quinze horas com a mesma energia. E o longo caminho ficara brevíssimo, já que se desfizera o pretexto cremoso para a saída das quinze horas.
Algo, porém, daquela rotina cercada de rituais, cheiros e gostos, permaneceria na memória de tardes singelíssimas e felizes. Eu ficara repousada ali, num tempo sem tempo, em que um pão doce de creme quentinho da padaria da esquina podia ser um pretexto perfeito para que eu alcançasse a sensação de felicidade. Da hora que se anunciava no relógio ao retorno a casa, acompanhada pelo embrulho quente, tudo estava cercado de magia, tudo tinha um significado absolutamente ingênuo, mas absurdamente completo, se penso nos padrões exigentes com que hoje a sensação de felicidade se apresenta para mim.
Por isso, passo o tempo tentando resgatar meu pão doce de creme quentinho da padaria da esquina. Vislumbro-o, em outras formas: no abraço carinhoso e apertado que minha filha mais nova me pede todos os dias; no cheiro no pescoço com que todas as manhãs acordo minha mais velha; no olhar meigo e cotidiano de minha gatinha a me esperar acabar de rodar a chave na fechadura; na palavra amiga e coruja de minha mãe ao telefone perguntando pelas novidades do dia; na expressão de alegria com que tantas vezes sou recebida nos corredores da universidade; nos pés protetores que roçam os meus na hora do sono; e em outros pequenos gestos e coisas que me cercam dia-a-dia, sem que, muitas vezes, sejam de fato percebidos como merecem.
Talvez resida aí a maior tristeza que a lembrança do pão doce de creme quentinho da padaria da esquina me traga. Algo dentro de mim se perdeu no emaranhado do tempo, algo me fez mais insensível àquilo que persiste, vivo e inteiro, no pão nosso de cada dia que nos é dado em fatias de gestos e sorrisos e palavras e imagens e gostos e pessoas e tudo mais. Em busca de sabores refinados, ignoro e até desdenho a dose singela de rotina em minha vida. E sonho alto, critico tudo e talvez fosse até capaz de ver, numa imagem de pão doce de creme quentinho que alguém me mostrasse, recalques sexuais, complexos freudianos, imaturidade psicológica e mil outras relações que minha mente cansada de ser feliz à moda dos simples constrói cotidianamente para me dar a ilusão de que cresci.
Não. Nada disso importa. Meu coração diz que o pão doce continua lá, imaculado e simples como sempre foi. Preciso apenas reaprender a cuidar da rotina de caminhar ao seu encontro, extraindo de cada passo a alegria que vestiu meus dias de persistência, ausência de cansaço e doçura.
Eis, assim, a lição do meu pão doce de creme quentinho da padaria da esquina: resgatar, sempre e persistentemente, os sabores do cotidiano, venham eles de padarias, escolas, universidades, lares, ruas, escritórios. Venham eles de qualquer lugar do mundo onde haja gente exercitando a tarefa de viver.
 (setembro de 2005)


Publicada no livro Onze cores da uva (Rio de Janeiro: OPVS, 2006. RAMALHO, Christina. Org.)