sexta-feira, 26 de abril de 2013

PELE D’ÁGUA



Christina Ramalho

Cidade da Praia. Ilha de Santiago. Cabo Verde. O sol d’África umedece meu corpo, e uma nova pele me reveste: pele d’água. Vestida por ela, não me reconheço. Meus olhos veem paisagens inéditas. Os ouvidos escutam mornas, coladeiras, funanás, zuquis[1]... As narinas recebem olores distintos. Minhas pernas me levam por onde não sei. Inauguro beijos e abraços, gentes que chegam e que se vão, sem que eu saiba o limite de reencontros possíveis. À minha volta, um espetáculo de cores, movimentos e lições a serem compreendidas.
Pelas ruas caminham meninas e mulheres com vasilhas e baldes na cabeça. Contudo, não há resquício de incômodo ou sacrifício. Ao contrário, suas figuras deslizam elegantes, altivas, como se a água ou as frutas que carregam fossem coroas que as dignificassem. Moças bonitas ziguezagueiam pelas calçadas com pernas quilométricas balançando os quadris e deixando entrever a dança que nelas habita. São belas em seus olhares pontiagudos. Crianças de mil caras correm, brincam, buscam as mãos das mães, sentam-se, com elas, no chão para vender roupas, sapatos, frutas, bebidas e apetrechos dos mais variados. Homens e rapazes se confundem na pele jovem que engana a idade. Em meio às mulheres e às crianças, eles parecem compor um mundo à parte, mas um mundo sujeito à estética do feminino. Idosos e idosas passam camuflados pela necessidade de perpetuarem a busca pela sobrevivência. As mesas dos bares estão sempre cheias. De sede, de conversa, de gestos. Igualmente cheias, porque apinhadas de produtos de toda natureza, estão as lojas estreitas e escuras. Cada uma é um universo completo de acessórios para viver. E o sol, absoluto, parece estar sempre ao meio-dia, até que decide entardecer.
Surpreendentemente, o suor que me custa viver tudo isso não escorre lento pela geografia dos braços, pescoço e rosto, mas se entranha nas próprias águas que gera. É um suor diferente que, por se amalgamar à pele, provoca a forte sensação de, mais do que Sol, haver água por todos os lados. Eu, como as ilhas, sou um pequeno pedaço de terra totalmente cercado de águas.
Cidade da Praia. Santiago. Cabo Verde. A pele d’água me transformou geograficamente. Deixei de ser a mulher-continente para ser a mulher-ilha. E que diferença há nessa nova geografia! Aqui o mar nos olha visceralmente. Somos parte dele, parte de sua generosidade, já que nada lhe custaria roubar-nos terra e vida. Antes, minha memória era de infinitas costas que pareciam desenhar uma linha de forças hercúleas igualmente poderosas: terra e mar. Aqui não. Aqui a fragilidade da terra é tão visível e marcante que a única forma de fugir dessa onipotência marítima é ser mar também. E talvez seja este o mistério da pele d’água. Talvez seja por isso que o suor, embebido de maresia, não escorra alheio à sucção dos poros, mas se ofereça a eles desejando ser carne, carne d’água, carne d’ilha, carne badio-cabo-verdiana.
Praia, 06/10/10


[1] Ritmos e danças típicas do país.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

MÚSICA



Luciana Almeida

Dizem que a música é a arte de exprimir através dos sons os sentimentos da alma. É certamente ela que dilacera o coração, preenche a solidão, cria outros mundos que promovem a elevação da condição humana. Isso é ser prenhe de significado. A simbiose harmoniosa e esfuziante de cada nota em conjunto é uma das sensações mais honrosas que se pode existir, porque o músico, em sua interpretação, é maestro de si, dono do seu mundo, criador de seus desejos e sujeito ativo deles. Nada disso ninguém pode arrancar.
As melodias comoventes e intensas são as que mais dissolvem o eu, fragilizam-no. Mas lentamente todos os pedacinhos que foram abalados tornam-se invencíveis com a força expressiva dos movimentos vertiginosos. Ela sabe como criar tantos mundos primorosos em suas cores e fantasias, percorre tudo e todos em quatro paredes e contagia. Quando é suave, parece um murmúrio passando entre doces ventos leves e dissolve a alegria dos seres nostálgicos. Se for a tristeza que esteja presente, ela tem o poder de também desatar todos os laços duros e depressivos e faz com que tudo se amenize e se transforme num contentamento. 
Ser música é padecer na felicidade, é preencher os vazios da interioridade sem precisar tapá-los novamente. É ser vida. Ocupa todos os espaços, existe para todos os gostos, provoca desde a intensificação da dor ao ápice da alegria. Não há como ser mais vida do que isso.
As dificuldades e peripécias são como um instrumento desafinado: só precisam de persistência, alguns ajustes e um bom ouvido para serem desmanchadas e chegarem ao ponto ideal. Ponto de realizações, de superação, de plenitude do viver, por mais que seja passageira. E se assim o for, o processo começa todo novamente, pois a afinação é efêmera e necessita ser adubada pela inata sabedoria para poder reexistir outra vez.


sexta-feira, 12 de abril de 2013

CRÔNICA DA INFÂNCIA VELHA



João Paulo

Quando eu era pequeno gostava de ir à casa da minha avó para brincar, comer doces (muitos doces!) e, sobretudo, ouvi-la contar as histórias do tempo dela. “No meu tempo, as coisas eram diferentes; tudo era mais difícil”, defendia ela. Nem por isso, contudo, ela deixou de brincar, de ser uma criança igual às outras. Contou-me certa vez que castanhas eram um numeroso rebanho que possuía, e as organizava em fileiras, pois gostava da ordem. As maiores eram as mais bem nutridas, negociadas no mercado com a prima; as mais magras eram tratadas de forma especial “para agradar”.
De outra vez me falou sobre a perseguição de João Valentim, famoso lobisomem do sertão sergipano. Nesse caso estava ela visitando uma comadre. Como não havia carro, a viagem se dava a pé. Ocorreu, então, que desde a sua saída com meu tio de casa sentiu-se vigiada, acompanhada por um estranho gato grande, felpudo, gordo, ligeiro nos passos, com unhas grandes e afiadas. O olhar desse felino a intrigava a ponto de ela sentir-se constrangida com sua presença. Tentou, pois, despistá-lo acelerando o caminhar; por fim, numa atitude extrema, chutou-o violentamente. O animal cambaleou, caiu, mas depois se ergueu, pondo-se insistentemente a segui-los novamente. No outro dia, ao encontrar-se com João Valentim, o sujeito de unhas grandes, soube que este estava a protegendo dos “perigos da estrada”. Que história bela! pensei eu. Vovó não era de me contar mentiras... Nãos seria capaz: era uma pessoa séria. Essa narrativa ficou na minha cabaça durante muito tempo, uma vez que fiquei deslumbrado pela fantasia. 
Depois que fui crescendo, comecei a sair de casa, ir a festas, baladas, namorar, e as visitas à vovó ficaram chatas, e suas histórias, sem graça. Agora lembranças de um tempo longínquo me eram infantis, surreais, ilógicas e cansativas.
Um dia reveria algumas fotos minhas quando pequeno e acharia uma foto do meu neto mais velho. Ele escutará minhas histórias com a mesma atenção que dei à vovó quando eu já era adolescente? Na verdade acho que preferirá a agradável companhia de centenas de milhares de amigos virtuais que jamais virão pessoalmente para confirmar suas existências. As histórias prediletas dele serão os seriados importados via TV a cabo dos norte-americanos...


sábado, 6 de abril de 2013

CAMINHOS






Flávio Passos


Eu voltava para casa, depois de sair da academia, numa quinta-feira, véspera de sexta-feira da paixão. Nesse dia, malhei os membros inferiores e, como sempre, após o treino, senti minhas pernas duras e trêmulas. Acontece que, no caminho, bati um pé no outro e acabei caindo no chão ainda aguado pela chuva da noite anterior. Na minha frente passava uma senhora segurando a mão de uma criancinha de no máximo dois anos. Os passos da mulher eram tão largos que a pobre criança mal conseguia acompanhar aquela que devia ser sua vó.
Sentei-me na quina da calçada suja para me recompor e fiquei a observar as duas criaturas que continuavam andar para o horizonte. Imaginei como o caminhar é simples. Basta apenas colocar uma perna na frente e em seguida a outra, e esse movimento nos faz chegar a lugares infinitos. Basta apenas saber caminhar. No entanto, algumas vezes, somos forçados a caminhar até lugares que não são escolhidos por nós. Basta lembrar Jesus Cristo, que foi obrigado a carregar uma cruz enorme em suas costas por entre ruas esburacadas até o caminho de sua morte.
Pensando bem, caminhar não é tão fácil assim, em se tratando de alguém que nunca fez ou esqueceu como se fazem esses movimentos. Há quem prefira viver assim, deixando que os outros guiem seus caminhos, andando com a ajuda de um guia, sem nunca se importar em escolher para onde ir.
Eu prefiro escolher meu caminho sozinho, mesmo tropeçando e me arrebentando no chão duro. Prefiro errar o caminho e acertar da próxima vez, sem precisar da ajuda de GPS... Prefiro, ainda, estar diante de vários caminhos tendo que escolher apenas um do que ser guiado para o caminho “certo”.
Levantei de cabeça erguida e mesmo com certo orgulho de ter tropeçado, segui direto para casa, com passos seguros.