Christina Ramalho
Estava na
varanda do meu apartamento, silenciosa e contemplativa, a imaginar
como poderia
descobrir as palavras
exatas para homenagear os
alunos e amigos
que dali a dois
finais de semana
estariam comemorando sua formatura no curso
de Letras da Universidade Veiga de
Almeida. O céu estava absolutamente azul e, entre visões de
prédios e pássaros,
o silêncio me
parecia sagrado. Nenhuma palavra ousava interromper aquele momento mágico em que a ideia dança
etérea e misteriosa, brincando de desafiar o silêncio...
Repentinamente, chegou a meus
ouvidos um
som familiar:
era a vizinha
do prédio em
frente, abrindo a porta
de sua varanda.
Impossível não
olhá-la. Nossas varandas estão tão próximas que
parecem confidentes. Dei-me conta do engano. Não era minha vizinha, mas uma garota
de cerca de quinze anos,
alta, magra,
desconhecida para
mim. Ela
trazia nas mãos um
aparelho de som
e CDs. Avistou-me, fez um aceno
simpático e continuou a instalar-se entre os vasos
de plantas e as cadeiras
de vime. Meu
corpo tensionou os músculos
e quase já
se virara para me carregar para
dentro de casa,
mas, não sei por quê, meu coração
estacionou ali, e eu me deixei invadir pela novidade que, sem cerimônias, quebrara o precioso
silêncio, levando as misteriosas ideias
a se esconderem.
Sem a menor timidez, a mocinha
ligou o som e, em
alto e bom
tom, começou a cantar
as músicas que
se espalhavam varanda afora. Sua voz doce e afinada foi aprovada
por meus
ouvidos, que,
num acesso de rebeldia,
abandonaram meus caducos
conceitos estéticos
e a prepotência que
nos faz tantas vezes
ignorar os sons
do mundo. Aquela menina
incrível não
só cantava, mas
dançava feliz como a felicidade deveria ser. Ainda posso
vê-la de braços abertos,
sacudindo o rabo-de-cavalo, entoando, com verdade definitiva, a música
que dizia:
Devia ter amado mais,
ter chorado mais,
ter visto o sol nascer.
Devia ter arriscado mais e até
errado mais,
Ter feito o que eu queria fazer.
Queria ter aceitado as pessoas
como elas
são.
Cada um sabe a alegria e a dor
que traz no coração.
O acaso vai me proteger,
enquanto eu andar distraído.
Devia ter complicado menos,
Trabalhado menos,
Ter o visto o sol se pôr.
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos,
Ter morrido de amor.
Queria ter aceitado a vida como ela é.
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier.
O acaso vai me proteger,
enquanto eu andar distraído.
Ah..., meus alunos queridos, pensei, será que
poderia lhes
dizer que a sensação de ter
trabalhado demais pode ser
um belo
sinal de que houve esforço
e dedicação? Será que
poderia dizer-lhes que,
entre a alegria
e a dor, todos
os caminhos percorridos nesses três anos nos conduziram à vida
porque ela
é justamente o somatório
dessas duas faces? Poderia
eu lhes recomendar que
chorassem todas as lágrimas a que têm direito,
porque são
elas que
cedem lugar aos sorrisos?
Poderia perguntar-lhes quando chegará o dia
em que
aceitaremos as pessoas como elas são?
Estava tão entretida nesses pensamentos,
que quase
não reparei na outra
melodia que
minha saltitante
cantora começara a cantar. Com
intensidade, aquela menina
abraçava o próprio corpo
e deixava as palavras brincarem de acreditar no amor:
Se eu me apaixonar,
tem que ser pra sempre
ou não vou me apaixonar...
E os beijos desses dias
serão quentes, estranhos, fatais...
Terão música e poesia,
como os filmes que não fazem mais...
Se eu me apaixonar,
será sem limites,
ou não vou me apaixonar...
O e o instante em que eu me der
tiver de ser,
vou me apaixonar
Ah..., meus queridos amigos, será que
caberia, em meio
a todas as formalidades acadêmicas, ignorar as questões sobre o magistério
e o futuro da nação,
e desejar-lhes um futuro
individual repleto
desse tipo de amor
pelo qual
metaforicamente se morre? Caberia lhes dizer que, acima de todas as circunstâncias
profissionais, importou e importa os seres humanos que vocês são e os seres humanos com quem trocarão experiências
vida afora?
Importaria lhes dizer
que pouco
contribuirá qualquer trabalho
que ignore o valor
do ser humano,
a importância de sua
evolução e de seu
direito ao amor?
Minha adorável companheira, mais
uma vez, abriu os braços
e cantou para o mundo
a terceira canção,
encaminhando meus pensamentos
por rumos
inusitados. Com
a força da filosofia
cotidiana que
está impregnada em nossa
rotina sem que a vejamos, a canarinha, numa explosão
de certezas, cantou:
Quem espera que a vida seja
feita de ilusão,
pode até ficar maluco
ou morrer
na solidão.
É preciso ter cuidado pra mais tarde não sofrer,
é preciso saber viver.
Toda pedra no caminho, você pode retirar.
Numa flor que tem espinhos,
Você pode se arranhar.
Se o bem e o mal existem, você pode escolher.
É preciso saber viver.
É preciso saber viver.
É preciso, sim saber viver. Só
isso. Isso
apenas. Nada
mais. Alguém
gritou um nome
parecido com Isabela, e a canarinha voou
para dentro
de casa, deixando-me os ouvidos e as retinas
ainda impregnados pelo
som e pela
imagem que
preencheram minha manhã.
Adeus, doce
canarinha. Obrigada, amiguinha...
Continue cantando, quis lhe dizer. Continue cantando por
todos nós
que temos habitado tão
silenciosos nossas varandas
impessoais.
Como ela
dissera, o acaso havia me protegido enquanto eu me distraía com
céu e silêncio, e, agora,
eu já
não precisava mais
procurar as palavras.
Elas me
haviam encontrado. E eis aqui o material
de que é feito
o intraduzível: o desejo
de que vocês,
meus queridos,
possam guardar nos
ouvidos e nas retinas
todas as metafóricas músicas que foram cantadas
neste palco absolutamente
imprevisível que
conduz ao magistério.
Rio
de Janeiro, 2003.