sexta-feira, 28 de junho de 2013

AQUI JAZEM OS ESQUECIDOS




Luciana Almeida

Numa combinação de ingredientes, ele satisfaz mulheres e homens, preenche um dos vazios da autoestima, estica ainda mais a vaidade. Penetra na pele de sequidão umedecendo-a com aroma embebedor. Esta capacidade dribla qualquer um, porque as narinas são enfestadas de líquido hipnótico. Nas ruas ou em ambientes fechados, os cheiros repercutem com toda energia, que os enlaçam numa engenhosidade de natureza irregular e mal feita. Logo desaparecem e nada pode comprovar sua passagem fugaz, esquecida. Sua existência forçada não rima com naturalidade, se fecha a receitas químicas testadas e estipuladas que, não dura muito, e são convertidas numa adoração desmedida.
Os outros perfumes, os esquecidos, acrescentam nova composição ao ar e atravessam suas contaminadas moléculas purificando-as. Aquele cheiro único da pele que nasce com a gente; aqueles cheiros pululantes do reino vegetal que se propalam fazendo com que entremos numa dupla respiração, compensam os vazios rijos e martelados pelo tempo. É certo que os vazios da mente devem ser preenchidos e desinflamados pelo pensamento. O caminho seguido nem sempre é esse, mas o inverso.
As imanências desses aromas vêm da raiz das providências divinas que circunscreve a imortalidade num lago de simbologias, às vezes ininteligível, e outras mergulhadas no vácuo da insensibilidade. O degustar do próprio cheiro inato, do cheiro alheio, sem sentir identidades ilusórias, numa comunhão sublime de criações jamais imaginadas, está longe de falácias. Mesmo que mudem de endereço, viajem, ou fiquem escorados em colunas de mármore, vão para outras dimensões, onde serão alinhados num fluxo ininterrupto e difuso que somente seu magnificente criador poderá desfazer.
É assim que tudo caminha, o esboço da variação inevitável do mundo e de tudo que o forma, mas que a alma trata de guardar os sabores que pelo olfato passaram e que circularam entre células e tecidos. São inolvidáveis. Inalá-los é conceber as coisas sob outro modo, que o consciente algumas vezes oculta num molde de abstração fixado em zonas pouco salientes. E quando suas existências forem cessadas, abrir-se-á alas para os bem-aventurados, que são capazes de sentir a própria alma, sem nada esperar da finitude da humanidade. Flutuar na aparência trata-se do desmanche da unidade maior que somos; aflorar a essência é o modelo de vida que mais convém no alcance da verdade.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

LEALDADE E RESPEITO



Flávio Passos

Lembro-me como se fosse ontem: seus pulos e latidos de alegria ao me ver chegando a casa, pelo branco e macio, olhos negros e brilhantes, dentes fortes e cândidos como leite. É você, Cristal. Minha pequena que me protege até daqueles que me querem bem, minha anja protetora, minha amiga leal, minha companheira eterna.
Cristal era assim: doce, vaidosa, meiga, brava e sensível. Adorava um colinho e balanços na rede. Os pelos cobrindo os olhos eram seu charme, odiava quando era tosada e não se importava de passar horas e horas sendo penteada após o banho, pois tudo isso a fazia sentir-se feliz e realizada por estar perto do seu dono que a amava tanto quanto ela.
Ela cresceu assim: sendo paparicada por todos, mas era seu dono a única pessoa a quem ela obedecia. Essa lealdade fez com que surgisse uma ligação muito forte entre eles, talvez eles se conhecessem de vidas passadas, ou, quem sabe, Cristal achasse que fosse um humano, ou, simplesmente, fosse apenas o poder da lealdade entre um cachorro e seu dono.
A lealdade que, creio eu, só exista entre essas duas espécies distintas, já que o ser humano é dotado de certos defeitos que, na maioria das vezes, impedem a lealdade a outro ser humano. Creio ainda que a lealdade seja a incapacidade de pensar mal ou agir de forma desonesta, e o cão é um ser ingênuo que pensa e age como se tudo fosse uma grande brincadeira de “pegar a bolinha”.
Talvez sejam a lealdade e a ingenuidade que faltem aos seres humanos para que se tornem uma raça com menos rancor, cólera, ódio e passem a ser uma raça dotada de alegrias, fidelidade, amor, felicidade, compreensão. Talvez, dessa forma, o mundo mude, as pessoas deem mais valor aos seus iguais, se respeitem, e, acima de tudo, se amem, espelhando-se no amor que sentem os animais.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O ENCANTO DAS FOTOS


Christina Ramalho

Ainda há pouco assisti, com minha sobrinha Alice, ao filme O encanto das fadas, do diretor Charles Sturridge, com Peter O'Toole representando Sir Arthur Conan Doyle. Uma das personagens principais, a menina de 12 anos chamada Elsie, lembra à Francis, sua priminha de 8 anos, que, ao nos tornarmos adultos, além de não vermos mais as fadas, começamos a nos esquecer delas. Por isso, ela diz, a fotografia (as duas tiraram fotografias das fadas que encontraram no riacho perto da casa) é importante. Ao ver uma fotografia, podemos relembrar algo que foi real, que foi vivido e que nos trouxe emoção, ainda que não possamos mais viver de perto, novamente, o que passou. A emoção, todavia, por ter sido verdadeira, volta como algo bonito, porque representa uma parcela de nós que vibrou em algum momento, em algum lugar. O que provoca o encantamento é justamente essa energia balsâmica que sobrevive às horas.

Depois de assistir ao filme, encontrei respostas para a relação que tenho com a fotografia. É exatamente assim que penso e vivo a fotografia. Minha câmera não consegue ser um instrumento de denúncia. Não consigo fotografar assim. (Ainda bem que há muitos e muitas que pensam diferente de mim, pois o mundo precisa de outros olhares...). O que me move é esse desejo de capturar o que na vida, nas paisagens, nas pessoas, nos animais, nas flores, é presente. Presente, por ser impalpável, por partir logo ali, depois da virada dos ponteiros. Presente, por ser dádiva desse mesmo impalpável tempo, sempre a nos oferecer suas lições.

O encanto das fotos me soa assim. Álbuns e mais álbuns, pessoas, animais, flores, paisagens: ora no armário da sala, ora em minhas mãos, há vida sendo celebrada em minha casa. O passado vem trazendo enfeites para o presente. Não enfeites de melancolia, mas pequeninos adornos, em cuja suavidade repousa a certeza absoluta de que sempre haverá imagens dignas de serem capturadas apenas porque significam que a beleza aconteceu em nossas vidas. Se a beleza se perdeu como matéria, não se perderá como memória, se realmente foi beleza.

(Natal, 21 de março de 2008)

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O OLHAR


Éverton Santos

Olhe, mesmo sem pretensão, e descubra a destruição que um olhar pode provocar quando se cruzam dois pares de olhos únicos e inequívocos. Basta um instante, um átomo de impacto, e o desejo consome, a vontade de navegar somente naqueles mares já grita alucinadamente. Os vitrais que sondam a alma e refletem o mais inescrutável denunciam: cupido passou e fez vítimas.
Enxergue, deixe-se empurrar pelas ondas enigmáticas, pela imensidão inebriante que paira nos dois glóbulos. Sinta-se flutuar a cada vez que os dois campos de visão se unificarem; procure o sorriso, a lágrima, a satisfação ou a mágoa naqueles que não disfarçam; feche-os quando beijar. Empreenda buscas, torne-se desbravador, compreenda a luz emanada pelas lamparinas: seja tradutor dos que falam na mudez.
Veja, decifre a linguagem, deixe-se tornar prisioneiro, detenha a paixão e a transforme no sentimento fulcral. Olhos são abismos de vida e de morte, lume dos perdidos e perdição dos fortes, faróis sedentos por almas a seduzir na guarnição armada contra a solidão. Querer explicá-los é tirar-lhes o encanto misterioso; descrevê-los é deixar-se enganar: esses espelhos d’água descortinam-se no ar.

domingo, 2 de junho de 2013

PRECISA-SE DE CONTADORES DE HISTÓRIA


João Paulo Santos Silva

Houve um tempo em que as pessoas se reuniam para contar histórias, até porque nem sempre existiu luz elétrica e todo o aparato tecnológico de que dispomos hoje... Nesse caso, os causos que os mais velhos nos contavam eram o que de melhor que se podia ter de entretenimento. Eram lendas de lobisomem, de mula-sem-cabeça, de fogo-corredor, narrativas do pai-do-pai-do-pai dele e aí vai...
A modernidade, com o advento da energia elétrica, acabou exterminando a existência desse narrador. Como dar atenção a alguém com “narrativas ultrapassadas” se podemos nos deleitar com a TV, com os famosos best-sellers, ou, ainda, com as viciantes redes sociais (internet e seus derivados)? Pois é, assim fica difícil...

O grande problema nisso tudo é que sem esses contadores de histórias vão-se também as histórias antigas, que fazem parte da tradição oral de uma comunidade. Ou seja, parte importante da cultura vai sendo engolida pelos efeitos devastadores da globalização. E como um povo sem memória é um povo sem um presente construtivo, talvez hoje sejamos incompletos culturalmente sem nos lembrarmos da causa...