sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A MATÉRIA



Luciana Almeida

Sentada numa cadeira de balanço, lembrei-me das diabruras que cometi quando criança. Lembrei-me, por exemplo, que quando tinha 7 anos, num ato de alegria e inocência, quebrei uma vasilha de cristal datada de aproximadamente dois séculos. Era uma relíquia, pertenceu ao meu bisavô que a adquiriu numa viagem de negócios ao Oriente Médio. Lembro da tia ao caminhar lentamente em direção ao seu quarto, naquela casa antiga e estreita, carregando consigo um vestido passado e pendurado num cabide. Nesse momento, as batidas palpitavam desenfreadamente, pois para chegar ao quarto teria que passar pela sala. Em linha reta caminhava, parecia que não iria notar. Quando, finalmente, estava prestes a concluir o caminho da sala, sentiu que pisou em algo. Era um caco de vidro.
  Eu, virada de costas, fingindo que a TV ocupava a minha atenção ouvi-a dizer: - Mas o que é isso? Continuei a olhar a TV. Ela prosseguia: - O que quebraram aqui? Em seguida, fitou a mesinha onde punha a vasilha e percebeu o espaço vago. Isso soou como um convite para não entregar a infeliz criatura que quebrara o objeto de cristal. As pernas trêmulas, os suores na tez ingênua e dissimulada denunciavam-me. Busquei palavras e não encontrei, nem a sensação que tomava conta de mim poderia aqui descrever. Mas pensei no quão maravilhoso é não sentir culpa, maravilha é ser como uma pluma, leve e aliviada. A situação ficava cada vez mais tensa, os gritos poderiam ressoar a qualquer segundo e serem esticados por horas.
Minha presença era a minha principal rival. Só havia eu por ali. Não tardou o esperado e a Tia Eulália disse num tom grosseiro: - Foi você quem fez isso? Não sei onde vou parar com tantos prejuízos nessa vida minha! Continuei a ficar calada, tentando encontrar alguma maneira de desdizer tudo. Não consegui. Criança não abriga mentiras por muito tempo. Já sem suportar tamanha pressão, entreguei-me: - Fui eu tia, estava brincando e a boneca voou e bateu na sua “vasia”. Desculpa. Nenhuma palavra a fazia esquecer dos destroços espalhados ao chão, o apego por aquele objeto parecia ser maior do que a capacidade de compreender as travessuras involuntárias vindas de uma criança. Eram só 7 anos! A tia não gostava de castigar seus sobrinhos, deixava esse encargo com os pais que, para ela, sabiam aplicar melhor o corretivo necessário, ao invés de uma senhora idosa debilitada em algumas de suas coordenações motoras. Como recompensa por tal favor, minha tia contou para a mamãe, que contou para o papai. Preço pago, castigo consumado.
Nesse instante matutei sobre o que seria mais vago: aquele diminuto espaço que poderia ser substituído por tantos outros enfeites que a tia colecionava ou sua raiva e desespero por alguém que estraçalhou um simples e insignificante objeto. Ignoro os apegos. Desprezo-os. Prefiro os atributos abstratos da vida, os valores de glória. E, hoje, me pego contemplando essa breve reminiscência, voltando o meu olhar para esse passado onde muitos dos sentidos da vida eram banhados pela matéria. Talvez não seja só um passado. Não, não é.


sexta-feira, 20 de setembro de 2013

FIM DE RELACIONAMENTO



Éverton Santos

Para escrever esta crônica cheia de olheiras, deixo que o tempo seja nada mais que o barulho dos ponteiros. Neles, a noite cai, chuvosa, como em lamento: e vejo as ruínas de um cemitério que antes era palácio. Perder um amor é tornar-se um vivo-morto.
Cai por terra um ciclo formado por dias, meses, anos; sms, músicas e presentes; ficadas, namoro e casamento. O que antes era uno, mesmo sendo duplo, volta a ser dois, dissolvido pela traição, pelo desgaste, pela distância. O riso ressoante é substituído pela lágrima abafada pelo travesseiro; as mãos já não se dão, esfriando-se, solitárias; o coração - núcleo da emoção - guerreia contra o cérebro - centro da racionalidade -, numa batalha em que loucura é consequência da devastação de um devastador conflito interno.
Perder alguém... Mas será que algum dia tivemos esse alguém? E o que fazer com as lembranças, com as memórias, com aquilo que fica daquele que vai? Porque algo sempre fica. Seja saudade, tristeza, decepção, esperança. E há vida depois de tal fatalidade? Pois, na véspera, no dia último em que vida era vida, tudo estava em paz, mas, num rompante, palavras duras em voz de violino violentaram a alma, enegreceram um céu dantes límpido.
Então, inicia-se o fim. Às vezes, inevitável; outras, necessário; por vezes, dolorido.
E há o reerguer-se. Mas como, se, depois de tudo, os outros são os outros e só?! Porque... porque as declarações ficam cravadas, as promessas são recordadas, os futuros desenhados nos crepúsculos coloridos, ah, estes continuam luzindo. E com força! Ficam, abandonadas no passado, a fera solta que encontrou domador; a carência apaziguada pelos beijos ao luar; e a incompletude que se completou enquanto se nutria da outra presença!
E os amigos em comum? Como é que você ‘tá’? Você supera. Talvez tenha volta. Não se preocupe, outra pessoa virá. As malditas comparações, o medo de encontrar outra pessoa que traga à tona os sofrimentos silenciados. Na verdade, o medo que mais cresce é o de saber que é possível amar de novo, já tendo amado uma vez! Será que o poço do amor um dia seca?
No entanto, nem tudo está perdido, pois há vida, aquela mesma que se diz não pertencer mais a si, depois de ter sido dada a quem a desperdiçou. Mas, o difícil ainda se enreda: tempos infindos pensando naquele alguém que te roubou de ti. Já no plano real, ir de volta pra casa, onde haverá apenas um prato na mesa, uma cama fria: calar o caos. Esquecer quem amamos é como tentar se lembrar de quem nunca conhecemos: impossível usufruto.
“O sândalo perfuma o machado que o feriu”. Isso passa, não é? É só ficar ali, inerte e inerme, me deixa aqui, quieto, amanhã é outro dia, isso passa. E se vê a depressão de onde é possível se jogar no escuro. Agora, só existe isso em mim: ausência de ti, por isso a escuridão.
E, por mais que pareça cocaína, afirmo: é só tristeza. A multidão me cerca, mas não me preenche. Fiz planos, tracei metas, morri no litoral, onde o vento nos abençoava. A palavra “término” não existia, pois eu só pensava no “final feliz”, sem saber que, depois do começo, o que viesse começava a ser o fim. E este chegou, se instalou, foi meu homicida.
O bom de chegar ao fim do poço é que a única solução é voltar para a superfície.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

VALEU A PENA

1

Flávio Passos

[...] há um certo prazer até no funeral e suas lamentações. Indiscutivelmente a tristeza está presente pela perda da pessoa, mas experimenta-se um certo prazer, graças à memória, em recordá-la e vê-la diante de nós em meio aos efeitos de sua vida. (Aristóteles)

Falar sobre a morte de alguém querido é algo que sei pouco, talvez pela quase nenhuma experiência que tenho. Porém, é algo que me deixa muito curioso.
Alguns dizem que do pó viestes ao pó retornarás, outros falam que, após a morte, reencarnamos no corpo de outra pessoa, além disso, há os que afirmam existir o céu e o inferno. Ah, o inferno! O reino do Deus Hades e sua esposa Perséfone, deusa da fertilidade, para onde vão as almas dos mortos depois de seguirem viagem com o barqueiro Caronte pelas águas dos rios Estige e Aqueronte.
Independente do local para onde vão os recém-mortos, como será que fica quem realmente amava alguém que se foi? Acredito que seja uma dor inconsolável e torturante, que perdura durante muito tempo. Saber que não se verá mais aquela pessoa, não se sentirá mais seu cheiro, não se poderá mais tocá-la, beijá-la...

Talvez seja como terminar um relacionamento contra sua vontade. Você tinha todos os momentos a pessoa ao seu lado, riam, choravam, brigavam, faziam as pazes, dormiam juntos, faziam planos para o futuro, e tudo fora interrompido. A vida passa a não ter mais sentido, sente-se dividido, fica faltando uma parte que foi embora e que não vai voltar mais.
No entanto, essa dor gera as lembranças dos momentos em que essas pessoas foram felizes, e eu acho, tal como disse Aristóteles, que a melhor coisa a fazer, nessa situação, é recordar o passado e sentir que tudo que foi vivido valeu a pena.


1. À esquerda, Cronos, deus do Tempo, segundo a Mitologia Grega. À direita, Fukurokuju, deus da Felicidade, da longevidade e da boa sorte, segundo a Mitologia Japonesa.