sexta-feira, 22 de novembro de 2013

UMA CRÔNICA-ODE POR FALTA DE VERSOS COMPETENTES



Christina Ramalho


Volto a publicar uma “crônica-ode” que escrevi em 2008. Ao reencontrar o texto, senti-o ainda vivo em minha emoção...

Ter poetas entre os amigos é algo marcante na vida de qualquer pessoa. Embora poemas alheios a seus autores sejam acessíveis a nós, bastando, para isso, que busquemos tê-los por perto, quando quem está próximo de nós é um poeta (ou uma, registre-se bem), não tem jeito: algo que muitas vezes nem pensaríamos em buscar se apresenta diante de nós, instigando-nos o tempo todo a romper com a monotonia do pensamento 3 X 4. Um amigo poeta é colírio, é susto, é aquele par “anjo/demônio” soprando gracejos em nossos ouvidos. Pensamos: “o mundo é uma merda!” E nosso amigo poeta diz a mesma coisa. Mas não diz a mesma coisa. Diz mais. Diz diferente. Diz de um jeito tão danado de bom, que, de repente, passamos a olhar para o tal “mundo merda” com olhos que não tínhamos. E, como uma contradição, ao olharmos para o mundo através dos olhos que a poesia construiu em nós, ele, o mundo, também de repente parece não ser “tão merda” assim... afinal, não é que nele habita um poeta? Falo isso e me lembro do poema “Fardo (a consciência do zero, 1981)”, do livro Rarefato (1990), de Frederico Barbosa:

tenho que
tentáculos afiados tentando
fincar   a   vista   futura feito
                                oráculo

não sou cego  não sossego

Raio de poeta que nega Homero para ser um. Raio terrível de poeta que brinca de dizer quão aguda é a palavra que percebe além de nós, que guarda lince nos olhos, angústia na consciência do vaticínio que nem vaticínio é, porque não há sequer espaço para a consolidação da imagem que se previu. O mundo acelera o poema, que morre logo depois do ponto final. Isso, poeta, não use o ponto final. Não sossegue. Nunca.
Ter poetas entre os amigos é essa coisa angustiante de se ver invadido/a por esses tentáculos afiados e ter que sobreviver sem as sobras do que éramos antes do poema. Poemas cuspidos em nossa cara, em nosso cotidiano, em nossa mesquinha necessidade de pularmos contentes dentro da bolha que nos protege, sem perceber que ela é de sabão. Amigos poetas, com sua chuva de sentidos, exigem de nós reinaugurações constantes. É um “reinventar-se” que não acaba nunca. É aquela consciência de ser o solitário entre as gentes, de ser o sobrevivente cuja reinauguração jamais é suficiente, como me faz recordar outro amigo poeta, o Luiz Otávio Oliani, no poema “Fatalidade”, do livro Fora de órbita (2007):

a vida pulsa em hiatos
e não sei pedir socorro

camaleão fora do ventre
transmudo a cor à revelia

mas a morte não é daltônica

Outra vez sem ponto final. Outra espetada na consciência tão placidamente sentada na antessala do existir, isenta de poemas, como uma vida (?) confortável deveria ser. E, no entanto, todavia, contudo, porém, vem-nos o amigo poeta, com seu poema dizer não o que precisamos ouvir, mas o que precisamos ter para dizer. E a não daltônica morte visita nossa antessala soando todos os alarmes e dizendo: “Não há sala!! O que você está fazendo aí? Esperando o quê?” Ele não pede socorro, mas nos socorre. Sina maldita.
Ter poetas entre os amigos é, assim, estar sempre cutucando aquela feridinha antiga, numa espécie de ritual sadomasoquista, em que somos algozes e vítimas. Algozes, porque amamos nossos amigos poetas mais do amamos a nós mesmos, logo, com eles aderimos à desconstrução do mundo e viramos guerreiros absurdos com baionetas que atiram fonemas e ferem alguns poucos ouvidos atentos. Vítimas, porque, embebedados por suas palavras, saímos mesmo por aí, atirando em tudo, principalmente em nós. E, no entanto, todavia, contudo, porém, e todas as adversativas que os amigos poetas nos trazem, ressuscitamos a cada novo poema, como conseguiu fazer Lau Siqueira, com seu “Bobo da corte”, do livro Texto sentido (2007), quando chegar aos 44 me pareceu uma convocação iminente ao inventário. Não precisei fazê-lo. Estava ali, no poema, disfarçado em outro número:


o que sinto nesses quarenta e seis vértices ungidos
                                que ora espetam ora aguçam os sentidos
é   que  cada  momento  vai  roendo  os  ossos  e  a
dormência   do  impossível  tomando  conta  de tudo
que é a b s o l u t o

o   que   comove   nesses   anos   cumpridos    entre
verdades amargas  e  doces mentiras é  que  apesar
de  tudo   ainda  pude semear  as  sobras  da  minha
inquietude

poemas    derramados  espalhados  no   tabuleiro  do
que     tanta   vez   provoca   o   asco    afirmativo   da
existência

o    que    colhi    entrementes  nem   sempre   foi   da
melhor   safra   mas   ainda   estou   aqui   escrevendo
versos    ligeiramente   aptos   às   consagrações    do
esquecimento

o    vazio   dos    olhares   atônitos   já   não    apavora
o       medo      há       muito     perdeu     o        sentido

ouço   o   ruído das  horas passando ao  largo  de uma
vida   que   se   cumpre para muito além das paisagens
guardadas na retina

e   sorrio   como   se   fossem  oráculos  os  galhos   do
                                cajueiro   que    vejo    pela   porta    entreaberta  sob  o
mantra   estridente   dos  sagüis que  resistem
nos esgares da mata

habito meu silêncio
e ouço atentamente a imensidão e a quietude
de tudo que grita e se move

o que está posto é muito mais do que posso
por isso sigo em frente
derrubando os muros que possam afastar
as matilhas da ternura

as águas que passaram nesse rio jamais ficaram
turvas por isso não me curvo e

vou indo vou

                                                                      rindo de tudo

embriagado com minha própria sede

como um homem que transita pela consciência
dos caminhos jamais percorridos

vou passando

passeando pelo mundo



Raio de amigo poeta que sempre sabe antes de nós, que parece rir das neuroses que, sob suas rédeas, se fizeram metáforas, esvaziando as reverberações super apelativas de nossas emoções indomadas. Ele doma. Molda. Apropria-se. Indo e rindo de si, de tudo, de nós, passeia mesmo. O que, em nós, é inventário, nele é verso malemolente, rio sinuoso de palavra trânsito. Que passa. Mas sem ponto final. Outra vez. E o “mundo merda” é tão mais que isso, só porque ele está ali. O inventário dói. E batemos palmas para a dor, porque nem mais dor sabíamos sentir.
Ter poetas entre os amigos é, enfim, ver-se, como eu, ridiculamente compelida ao texto ode, ao puxa-saquismo deslavado, àquela vontade de dar um abraço bem grandão nesses sujeitos tão descaradamente sábios e néscios, malabaristas 24 horas por dia caminhando nos fios do desejo que a palavra tece e arrebenta bem no meio da caminhada. Cai o poeta e nos leva (amigo...) com ele. Do tombo, surge outro poema. Nele. E outro hematoma. Em nós. Merda de mundo legal este em que “merda” pode ser bom agouro. Sorte. Isso é ter poetas entre os amigos.


Março de 2008

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