sexta-feira, 22 de março de 2013

INVENTÁRIO




Christina Ramalho

Estava na varanda do meu apartamento, silenciosa e contemplativa, a imaginar como poderia descobrir as palavras exatas para homenagear os alunos e amigos que dali a dois finais de semana estariam comemorando sua formatura no curso de Letras da Universidade Veiga de Almeida. O céu estava absolutamente azul e, entre visões de prédios e pássaros, o silêncio me parecia sagrado. Nenhuma palavra ousava interromper aquele momento mágico em que a ideia dança etérea e misteriosa, brincando de desafiar o silêncio...
Repentinamente, chegou a meus ouvidos um som familiar: era a vizinha do prédio em frente, abrindo a porta de sua varanda. Impossível não olhá-la. Nossas varandas estão tão próximas que parecem confidentes. Dei-me conta do engano. Não era minha vizinha, mas uma garota de cerca de quinze anos, alta, magra, desconhecida para mim. Ela trazia nas mãos um aparelho de som e CDs. Avistou-me, fez um aceno simpático e continuou a instalar-se entre os vasos de plantas e as cadeiras de vime. Meu corpo tensionou os músculos e quase se virara para me carregar para dentro de casa, mas, não sei por quê, meu coração estacionou ali, e eu me deixei invadir pela novidade que, sem cerimônias, quebrara o precioso silêncio, levando as misteriosas ideias a se esconderem.
Sem a menor timidez, a mocinha ligou o som e, em alto e bom tom, começou a cantar as músicas que se espalhavam varanda afora. Sua voz doce e afinada foi aprovada por meus ouvidos, que, num acesso de rebeldia, abandonaram meus caducos conceitos estéticos e a prepotência que nos faz tantas vezes ignorar os sons do mundo. Aquela menina incrível não cantava, mas dançava feliz como a felicidade deveria ser. Ainda posso vê-la de braços abertos, sacudindo o rabo-de-cavalo, entoando, com verdade definitiva, a música que dizia:

Devia ter amado mais,
ter chorado mais,
ter visto o sol nascer.
Devia ter arriscado mais e até errado mais,
Ter feito o que eu queria fazer.
Queria ter aceitado as pessoas como elas são.
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração.

O acaso vai me proteger,
enquanto eu andar distraído.

Devia ter complicado menos,
Trabalhado menos,
Ter o visto o sol se pôr.
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos,
Ter morrido de amor.
Queria ter aceitado a vida como ela é.
A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier.

O acaso vai me proteger,
enquanto eu andar distraído.

Ah..., meus alunos queridos, pensei, será que poderia lhes dizer que a sensação de ter trabalhado demais pode ser um belo sinal de que houve esforço e dedicação? Será que poderia dizer-lhes que, entre a alegria e a dor, todos os caminhos percorridos nesses três anos nos conduziram à vida porque ela é justamente o somatório dessas duas faces? Poderia eu lhes recomendar que chorassem todas as lágrimas a que têm direito, porque são elas que cedem lugar aos sorrisos? Poderia perguntar-lhes quando chegará o dia em que aceitaremos as pessoas como elas são?
Estava tão entretida nesses pensamentos, que quase não reparei na outra melodia que minha saltitante cantora começara a cantar. Com intensidade, aquela menina abraçava o próprio corpo e deixava as palavras brincarem de acreditar no amor:

Se eu me apaixonar,
tem que ser pra sempre
ou não vou me apaixonar...
E os beijos desses dias
serão quentes, estranhos, fatais...
Terão música e poesia,
como os filmes que não fazem mais...
Se eu me apaixonar,
será sem limites,
ou não vou me apaixonar...
O e o instante em que eu me der
tiver de ser,
vou me apaixonar
por você.[1]

Ah..., meus queridos amigos, será que caberia, em meio a todas as formalidades acadêmicas, ignorar as questões sobre o magistério e o futuro da nação, e desejar-lhes um futuro individual repleto desse tipo de amor pelo qual metaforicamente se morre? Caberia lhes dizer que, acima de todas as circunstâncias profissionais, importou e importa os seres humanos que vocês são e os seres humanos com quem trocarão experiências vida afora? Importaria lhes dizer que pouco contribuirá qualquer trabalho que ignore o valor do ser humano, a importância de sua evolução e de seu direito ao amor?
Minha adorável companheira, mais uma vez, abriu os braços e cantou para o mundo a terceira canção, encaminhando meus pensamentos por rumos inusitados. Com a força da filosofia cotidiana que está impregnada em nossa rotina sem que a vejamos, a canarinha, numa explosão de certezas,  cantou:

Quem espera que a vida seja feita de ilusão,
pode até ficar maluco ou morrer na solidão.
É preciso ter cuidado pra mais tarde não sofrer,
é preciso saber viver.
Toda pedra no caminho, você pode retirar.
Numa flor que tem espinhos,
Você pode se arranhar.
Se o bem e o mal existem, você pode escolher.

É preciso saber viver.
É preciso saber viver.
É preciso saber viver.[2]

É preciso, sim saber viver. isso. Isso apenas. Nada mais. Alguém gritou um nome parecido com Isabela, e a canarinha voou para dentro de casa, deixando-me os ouvidos e as retinas ainda impregnados pelo som e pela imagem que preencheram minha manhã. Adeus, doce canarinha. Obrigada, amiguinha... Continue cantando, quis lhe dizer. Continue cantando por todos nós que temos habitado tão silenciosos nossas varandas impessoais.
Como ela dissera, o acaso havia me protegido enquanto eu me distraía com céu e silêncio, e, agora, eu não precisava mais procurar as palavras. Elas me haviam encontrado. E eis aqui o material de que é feito o intraduzível: o desejo de que vocês, meus queridos, possam guardar nos ouvidos e nas retinas todas as metafóricas músicas que foram cantadas neste palco absolutamente imprevisível que conduz ao magistério.

Rio de Janeiro, 2003.




[1] Letra e música de Rosana.
[2] Letra e música de Roberto Carlos.

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