Éverton
Santos
Pela manhã, o peixeiro passou aqui em
casa e trouxe a encomenda da minha mãe. Como ela não estivesse, fui buscar a
penca de peixes, uns seis, unidos todos pela boca por uma palha verde de
palmeira. Segurei pela amarração e só então, dado o repentino reboliço quase
generalizado por parte dos animais em minha mão, percebi que alguns ainda
estavam vivos, frescos, e senti como uma falta de ar: aqueles peixes pediam
água, balbuciavam serenamente, lutavam contra a morte, negavam-se a dar o
último suspiro, tentavam encontrar forças fora do seu hábitat.
Foi então que me vi como um culpado,
apesar de eu mesmo já ter pescado tantas vezes. Nunca agredi a cadeia alimentar
e afinal eu sabia que era fato que os homens comiam peixe, assim como outros
tantos animais faziam parte da culinária rica em proteínas que a maioria das
pessoas consome. Por um instante imaginei que um instinto vegetariano havia
gritado em mim e pedia para que eu encontrasse o lago mais próximo para
devolver a vida que se esvaía naqueles inofensivos seres esbugalhados de sede. Contudo,
a minha única ação - ou reação? - foi colocá-los num vasilhame, que eu sabia
servir como uma maca de hospital, na qual eles, enfim, iriam expirar.
Fiquei transtornado. A água era
essencial à vida dos peixes, e o que era de suma importância para mim? Sem o
que eu não viveria? Sem o ar, apenas? Sem a perfeita saúde? Será que assim como
aquela palha que unia os animais na hora da morte, estaria eu unido a algo, a
alguém, de forma que, sem isso, eu também fosse definhar até o silêncio
imaculado do fim? O que há em cada momento vivenciado que me mantém de pé,
dando-me suporte para que o vazio não me envolva? Será, me pergunto ainda mais,
que podem os peixes me trazer essa dor de cabeça maçante, impregnar meu corpo
com um súbito mal-estar?
Lamento dizer, mas cada um carrega um
ponto fraco, cada um traz seu edifício interior, seu espelho machadiano. Dentro
de si ou no entorno, há, claramente, para todos, as muletas que amparam e que
possibilitam a trajetória facilitada pelo uso de tais artefatos. O ar é para os
peixes aquilo que o amor chega a ser para tantos humanos. Assim como o
trabalho, a casa, a família, o ego que se satisfaz em si mesmo. Perdendo isso, o
que resta? O insosso, o dissabor, o oco impreenchível? E onde o ânimo para
recomeçar? Conseguimos, de alguma forma, substituir algo fundamental quando de
nós ele é retirado? Teremos nós mais sorte que os peixes? Sabemos sair dos
labirintos, nos desenredar das teias de aranha, levantar da cama e começar a
contagem a partir da origem, do marco zero?
É preciso coragem para reencontrar as
rédeas, principalmente quando a luz está apagada e o escuro se faz breu. Da
chama que se apaga, onde estará Prometeu? Poderia ele me trazer a paz do
conhecimento? Oh, Sócrates, poderias tu me ajudar a decifrar esse desafio?
Lamento, mas acho que a Esfinge me há de
devorar.
Enquanto escrevo, os peixes, na
geladeira, já pararam de se debater.
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